Se houvesse um concurso de arquipélago mais obscuro do planeta, as gélidas ilhas Kerguelen teriam grandes chances de ganhar de goleada. A região habitada por seres humanos mais próxima das Kerguelen é Madagáscar, a mais de 3,3 mil km de distância de lá -mas nem esse isolamento foi capaz de impedir que a fauna marinha do arquipélago fosse contaminada por metais pesados, como mercúrio e cádmio.
O resultado não é apocalíptico (há níveis de contaminação mais altos em espécies da Antártida, por exemplo), mas trata-se de mais um sinal de como não há canto da Terra em que os dejetos industriais humanos não tenham feito estrago.
“Mesmo se nunca tivesse havido atividade industrial, ainda assim alguns desses bichos teriam índices altos de metais pesados no organismo, porque também há fontes naturais desses elementos, e certas espécies têm tendência maior a acumulá-los em seus órgãos”, pondera o oceanógrafo Caio Vinicius Cipro, que faz pós-doutorado na USP. “Mas é claro que a atividade humana recente foi responsável por lançar uma quantidade importantíssima de metais pesados nos oceanos.”
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Cipro é o principal autor de um estudo sobre a presença desses contaminantes no organismo dos bichos de Kerguelen, publicado recentemente na revista científica Polar Biology. Também assina a pesquisa o antigo supervisor do oceanógrafo, Paco Bustamante, da Universidade de La Rochelle (França).
Foi Bustamante, aliás, o responsável por obter as amostras de diferentes membros da fauna marinha do arquipélago (mariscos, lulas, crustáceos e peixes) ainda no final dos anos 1990.
Não demorou muito para realizar os ensaios laboratoriais com essas amostras, mas o pesquisador de La Rochelle não conseguiu ir adiante no exame dos dados. “Eu nem cheguei a encostar nessas amostras, mas ele me pediu para realizar a análise propriamente dita durante o tempo que passei com ele na França”, explica Cipro.
Quem come o quê
O trabalho é importante por analisar criaturas que ocupam posições mais modestas na cadeia alimentar marinha -bichos de porte menor que são herbívoros ou que comem herbívoros, de modo geral.
Ocorre que uma das principais causas da preocupação em relação aos metais pesados no ambiente tem a ver com a chamada biomagnificação, processo pelo qual a proporção desses elementos nos seres vivos vai aumentando conforme fica mais alto o nível trófico, ou seja, quanto mais a criatura se aproxima do papel de predador de topo de cadeia (um carnívoro que come outros carnívoros, grosso modo).
No caso dos mares, isso significa as espécies que são tradicionalmente mais pescadas são consideradas mais saborosas -atuns, salmões etc-, bem como os mamíferos marinhos, de baleias a focas.
“Todo mundo tende a se focar nos efeitos sobre essa megafauna carismática, mas é preciso ter dados sobre os níveis de base também. Com esse trabalho a gente consegue ter uma ideia melhor desse caminho que os metais pesados fazem pelos níveis tróficos”, diz o oceanógrafo.
Não é um caminho suave. Quantidades elevadas de mercúrio podem causar danos ao sistema nervoso, como documentado no caso de comunidades de garimpeiros e ribeirinhos na Amazônia (esse metal é usado na mineração do ouro).
Já o cádmio pode causar danos aos ossos e aos rins, por exemplo. Ambos estão associados à atividade industrial, mas o mercúrio, por ser potencialmente mais volátil, viaja com mais facilidade pela atmosfera.
Outro resultado importante da análise é que, ao menos no contexto dos bichos de porte mais modesto das ilhas, não parece haver uma associação forte entre o nível trófico ocupado pelo animal e a concentração dos metais pesados em seu organismo -as variáveis mais importantes parecem ser o tipo de habitat ocupado pelo animal e a sua maneira de se alimentar.
No caso dos bivalves (moluscos com suas conchas) do arquipélago, por exemplo, os níveis de cádmio são especialmente altos, talvez porque esses animais, que são filtradores, estão sujeitos a dejetos trazidos pela água de colônias de aves nas proximidades- e nas aves já teria havido um acúmulo do metal pelo consumo de peixes.
A pesquisa teve apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).