Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
inteligência

A maldição do casamento precoce

É temporada de casamentos em Daca. Os convites são distribuídos — em papel grosso, cobertos por envelopes dourados, convidando para festas em hotéis requintados. Prédios de apartamentos e às vezes ruas inteiras são decoradas com luzinhas brilhantes.

Uma amiga minha de escola (não posso usar seu nome) se casou quando tínhamos vinte e poucos anos. Parecia o par moderno perfeito: ela conhecia o futuro marido desde o colégio; os dois fizeram faculdade na Costa Leste dos EUA e voltaram para Daca depois de formados.

A festa foi luxuosa — com direito a DJs vestidos como os padrinhos — realizada em um hotel, com bolo de três andares e lua-de-mel em Bali. De presente, ganharam um carro e um apartamento mobiliado.

Algumas semanas depois, minha amiga me contou uma história que nunca esqueci: ela disse que foi à casa dos sogros para comer curry de camarão, prato favorito dos recém-casados. Na hora de servir, a sogra instruiu: "Lembre-se de dar o camarão maior para o meu filho".

O comentário surpreendeu minha amiga, mas ela sorriu, obediente, como qualquer um faria na mesma situação, e serviu o camarão mais gorducho para o marido. Uma semana depois, foram convidados para comer na casa dos pais dela; no cardápio, o mesmo prato. Desta vez, foi sua própria mãe que disse: "Dê o camarão maior para o seu marido". Em minha opinião, acabou aí qualquer reivindicação de igualdade de direitos que minha amiga pudesse querer fazer. Pode até parecer mesquinho — o que são dois camarões? — mas a história insinua uma grande injustiça.

Quando minha amiga foi à casa dos sogros, teve que servir o marido quando ele era perfeitamente capaz de se virar sozinho em uma casa em que, tecnicamente, ela era a convidada e ele, o anfitrião. E mesmo em sua própria casa, ela viu seu status diminuído.

Pelo visto a igualdade termina quando o casamento começa.

Não dá para dizer que a união dela foi "precoce" – afinal, o termo é reservado para mulheres que se casam antes de alcançar a maioridade, aos 18 anos (como grande parte das meninas aqui faz, algumas até aos doze) – mas foi muito cedo. Ela era estudada, escolheu com quem ia se casar e engatou uma carreira de sucesso; no entanto, há uma forma sutil de hegemonia oculta sob a pompa de uma festa luxuosa e uma igualdade fingida que permite que a nora seja analisada minuciosamente e o genro, exaltado.

Um estudo recente feito pela organização de desenvolvimento Plan Bangladesh e pela ONG Centro Internacional para Pesquisas de Doenças Diarreicas Bangladesh mostrou que 64 por cento das mulheres com idades entre 20 e 24 anos se casaram antes de alcançar a maioridade. O casamento e a maternidade precoces são responsáveis por vários problemas sociais e de saúde, desde a maior incidência de violência doméstica a um risco mais alto de mortalidade materna e infantil. Noivas jovens deixam de estudar (de acordo com o Unicef, 5,6 milhões de crianças bengalis abandonaram a escola por causa do casamento), ou seja, têm menos oportunidade de emprego e, mais importante, menos conhecimento de seus direitos dentro do casamento.

A resposta do governo a esse relatório? Propor a diminuição da idade legal para o casamento para 16 anos. A ministra para assuntos femininos e infantis, Meher Afroz Chumki, comentou: "No nosso país, as meninas já estão maduras aos 14 anos e podem se tornar um peso para as famílias. Se o país permite aos pais casarem suas filhas mais cedo, muitos problemas sociais deixarão de existir".

O ministro para assuntos familiares e de saúde, Zahid Maleque, confundiu as coisas mais ainda ao insistir que o problema era a fuga, alegando que "no interior, as adolescentes fogem de casa para se casar". O que os dois políticos têm em comum? A ideia de que uma adolescente que começa a desenvolver sua maturidade sexual é um perigo para a família e que o casamento é uma forma de controlar o comportamento sexual feminino. Para eles, o problema está aí e não no sistema que limita as escolhas das jovens.

É notório o progresso que Bangladesh vem fazendo em termos de igualdade entre os sexos graças à ênfase na educação feminina e na melhoria ao acesso à saúde pública. Além disso, o governo está também expandindo um sistema de subsídios com o objetivo de manter as meninas no ensino secundário.

Só que esses programas não vão vingar até o casamento deixe de ser um rito valorizado pelo qual a mulher precisa passar ainda muito nova, comprometendo sua independência, sua educação e, em muitos casos, seu bem-estar físico e emocional.

Para a garota que mora em um vilarejo remoto, as razões para se casar cedo são principalmente econômicas. As famílias arranjam as uniões das filhas para evitar o pagamento de dotes altos, pois quando mais jovem a noiva, menos os pais têm que pagar.

Minha amiga, que teve um casamento luxuoso na cidade grande, parece não ter nada em comum com a menina interiorana forçada pelos pais a se casar com 14, quinze anos, mas ambas são partes do mesmo sistema: a glorificação do casamento e uma festa de arromba na qual os pais da moça gastam uma enorme fatia de sua renda significam que suas filhas não resistem à pressão social de se casar cedo.

A responsabilidade dos políticos eleitos é a de proteger as jovens de costumes retrógrados que limitem seu potencial, não mudar as regras para acomodar as estatísticas governamentais; apesar da reação inadequada dos líderes atuais, no entanto, futuro é promissor. Estudos mostram que o nível de casamentos precoces está caindo – mas temos um longo caminho a percorrer para reverter a suposição antiga de que uma adolescente é um problema para o qual a única solução é o casamento.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.