“Gomorrah”, que conta as peripécias da família Savastano, é a série de TV mais popular da história da Itália, e já se arrisca além das fronteiras, com os doze primeiro episódios vendidos para transmissão em 50 países. Sem dúvida é um programa que contará uma história excelente para o mundo – mas o que lhe dirá da Itália em si?
Os Savastanos fazem parte da Camorra, a versão napolitana da Máfia. O chefão, Pietro, é casado com Imma; eles têm um filho, Gennaro, mais conhecido como Genny. Ciro é o capanga e Salvatore Conte, o rival. Esses assassinos, meticulosos e exagerados, conseguem conciliar o amor pela música com a violência, narcotráfico com decoração exótica, devoção aos santos e paixão por armas de fogo.
O cenário é a periferia de Nápoles, um emaranhado de passarelas, estacionamentos mal iluminados e imensos conjuntos habitacionais de concreto, incluindo o famoso Le Vele. De vez em quando, como contraste, uma paisagem perfeita do Mediterrâneo aparece ao fundo, a mesma vista que os turistas veem a caminho da Costa Amalfitana.
“Gomorrah” baseada no best-seller “Gomorra”, do jornalista Roberto Saviano, tirou o título da cidade pecadora que aparece na Bíblia; convenientemente, também rima com Camorra. A Itália que o seriado mostra é esquálida e brutal, o que surpreendeu muita gente.
Não é a primeira vez que a criminalidade italiana inspira resultados artísticos espetaculares; de “O Poderoso Chefão” a “Trapaça”, há muito os cineastas trabalham com tramas mafiosas. A TV fez o mesmo mais tarde, mas não com menor entusiasmo.
Seis temporadas e 86 episódios entre 1999 e 2007 fizeram de “Os Sopranos” um sucesso invejável. A crônica de uma família ítalo-americana exemplificou o misto de desonestidade e simpatia, amor e crueldade que supostamente move o crime organizado italiano e não demorou a conquistar milhões de fãs ao redor do planeta.
Já “Gomorrah” é mais realista. Os criminosos não são glorificados; não há monstros adoráveis como Tony Soprano. A trama é fictícia, mas baseada em eventos reais. Com cinegrafia assombrosa, ritmo ágil e diálogos bem escritos, no dialeto napolitano, com precisão e ritmo, é prova – se é preciso uma – de que os italianos podem oferecer um nível televisivo de categoria. Antes de “Gomorrah”, o diretor Stefano Sollima tinha feito o popular “Ligações Criminosas”, mas, antes ainda, foi cinegrafista de grandes redes como CNN, NBC e CBS, muitas vezes em zonas de guerra.
Em resumo: a Itália criou uma série de TV popular, realista e belamente retratada – o que também acabou deixando muita gente preocupada. O sucesso internacional de “Gomorrah” pode se transformar em publicidade negativa para Nápoles e a própria Itália justo quando o governo jovem do primeiro-ministro Matteo Renzi está tentando, de todas as formas, restaurar a confiança entre os estrangeiros. A Itália deu um duro danado para se livrar do estereótipo nacional do sujeito inescrupuloso e suspeito que tem uma arma em uma das mãos e um prato de espaguete (ou, no caso de “Gomorrah”, de peixe frito) na outra. O mesmo realismo que os críticos e espectadores adoram pode muito bem sair pela culatra, reforçando a ideia de que há algo podre na república italiana.
Acusações semelhantes foram feitas a “Os Sopranos”, que se passa em Nova Jersey. A comunidade local se ofendeu, alegando que o seriado alimentava os piores clichês, a ponto de ser difamatório. A Fundação Nacional Ítalo-Americana e o ex-governador de Nova York, Mario Cuomo, protestaram. Os integrantes do elenco não puderam participar dos desfiles do Dia de Colombo. Em 2001, uma pesquisa da PublicMind concluiu que quem assistia a “Os Sopranos” tinha a tendência de encarar Nova Jersey e os ítalos-americanos de forma negativa.
Será que “Gomorrah” fará o mesmo pela cidade e o povo de Nápoles?
Muitos dos meus compatriotas estão ansiosos com essa questão, mas acho a preocupação, felizmente, inútil, justamente por causa do realismo da produção. Os Savastanos não serão os novos Sopranos. Os personagens entusiasmam — como em qualquer boa série — mas não cativam. Não há empatia. Em “Gomorrah” não há mocinhos e bandidos, só bandidos e gente pior ainda. O público observa e aprende, mas não se identifica com eles.
E o que aprendem é que a Itália, como qualquer outra sociedade do planeta, tem um lado sombrio — mas “Gomorrah” também deixa claro que retrata apenas uma faceta, não o país inteiro. A Nápoles na qual os criminosos agem tem também o segundo maior porto de passageiros do mundo, é a quarta maior economia urbana do país e possui o maior centro histórico da Europa, promovido a Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
O realismo de “Gomorrah” não é sinistro nem sensacionalista; é comedido, para que o público sinta que há um mundo além dele, uma Itália em que não há só corrupção e morte.
Nesse sentido é mais parecida com “The Wire”, obra-prima de David Simon sobre drogas, policiais e pobreza em Baltimore: por mais centrado que o seriado seja, há sempre a sensação de que a cidade — e a sociedade norte-americana — tem mais a oferecer que cocaína, propinas e armas.
Por isso, meus caros conterrâneos, relaxem e aproveitem um excelente programa de TV.
A Camorra é ruim para a Itália; “Gomorrah”, não.
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