"Estou no meio de um atoleiro incrível", Matt Jennings, chef do Farmstead em Providence, Rhode Island, anunciou na escuridão, da cabana encarapitada a 3,5 m de altura.
Ele já tinha ido caçar rã no meio da floresta com um guia antes do raiar do sol, machucado a mão descendo de uma escada, espremido o corpanzil escada acima (outra) e numa cadeira giratória toda molhada.
O que o incomodava, porém, não era o jeans molhado, nem o dedo sangrando nem a falta de sono, mas sim o fato de que, com uma bala só na agulha e zero experiência de caça, deveria abater um veado ou um javali que seu guia jurou que passaria naquele trecho entre as árvores.
Jennings, ao lado de vinte outros chefs de várias partes do mundo, esteve nessa mata em outubro por causa do Cook It Raw, evento culinário anual bastante peculiar, mas cheio de prestígio, que se tornou um dos mais disputados do setor gastronômico.
Na noite anterior, ele tinha aberto e limpado, na base do facão, um aligátor que acabara de ser pego à luz dos faróis de uma picape, serrando as patas enquanto Jeremy Charles, chef da Terra Nova, cortava a língua do bicho. Para o jantar, fatiou e grelhou o coração de uma corça.
Só que estava começando a ter sérias dúvidas. "Se um animal lindo e inocente passar na minha frente, será que vou ter coragem de estourar seus miolos?", questionou.
No fim das contas, Jennings acabou não vendo sua presa mas essa é exatamente o tipo de pergunta que deve surgir durante o evento, realizado num lugar diferente a cada ano desde 2009.
A ideia principal do Cook It Raw é levar o preparo dos alimentos de volta aos elementos básicos: coleta, caça, pesca, plantio, corte e preparação na fogueira. O gosto da natureza a carne de um veado, cogumelos frescos, raiz-forte colhida do leito dos riachos é parte obrigatória do programa.
Europeus ilustres como Pascal Barbot, Albert Adrià e Massimo Bottura já acamparam com nativos das Américas como David Chang, Sean Brock e Alex Atala. Chefs aclamados da Ásia, como André Chiang e Yoshihiro Narisawa, se arrastaram antes do nascer do sol ao lado de revelações escandinavas como Magnus Nilsson e René Redzepi.
"Eu quis aproveitar a experiência ao máximo", conta Jennings, que participava pela primeira vez e estava intimidado pelos nomes famosos à sua volta, "mas estabeleci uma regra para mim mesmo já no avião: não falar com Albert Adrià a menos que ele me dirija a palavra".
O Cook It Raw começou em Copenhague por causa da influência do famoso restaurante Noma e o trabalho de seu chef, Redzepi, o rosto do chamado "novo estilo nórdico" que usa ingredientes estritamente locais e sazonais, com inovações gastronômicas complexas.
Na Lapônia, eles testemunharam o abate de uma rena; na costa oeste do Japão, tentaram caçar patos em pleno voo com redes e varas longas; aqui, eles colheram yaopon, a única planta nativa da América do Norte que contém cafeína. O toque final: um banquete grandioso, com cada chef improvisando um único prato inspirado pela região.
"A ideia de ter chefs trocando informações e técnicas voluntariamente com estranhos ainda é nova", conta Daniel Patterson, chef do Coi, no norte da Califórnia. E aqueles que são competitivos em seus restaurantes voltam a ser crianças no Cook It Raw. "Foi mágico", resumiu ele.
O evento deste ano foi o primeiro realizado nos EUA e o primeiro também a aceitar patrocinadores comerciais. O grupo se reuniu em Charleston e a "área de estudo" foi o Lowcountry, região de pântanos costeiros e ilhas-barreira que se estendem da Carolina do Norte até a Geórgia.
Em Turnbridge, um antigo arrozal, os canais que já irrigaram muitos hectares de plantações hoje abrigam camarões, caranguejos e aligátores. O estado também possui oito hectares de arroz de ouro, uma variação rica e aveludada que sumiu nos anos 20, mas que renasceu nessa área.
Os caules vermelhos e dourados se agitavam ao redor das orelhas do chef Dan Barber enquanto Glenn Roberts, dono do Anson Mills e grande especialista em grãos do sul do país, ensinava ao grupo todo o processo de colheita do arroz, desde o corte até o polimento.
"Você desenvolve uma conexão com o ingrediente quando passa a literalmente pisar nele", conclui Barber, dono do Blue Hill at Stone Barns, um restaurante-fazenda ao norte de Nova York.
Jennings é um chef desconhecido de uma casa pequena numa cidade pequena, mas foi seu incentivo às fazendas e à pesca da Nova Inglaterra o ajudou a ser aceito no Cook It Raw.
"Uma hora Albert Adrià estava trabalhando à minha direita, Ben Shewry, à esquerda e Dan Barber e April Bloomfield atrás de mim; pensei: Certo, vou vomitar só um pouco, mas depois fico bem."