A princípio, sente-se o odor agridoce. A seguir, vem o espanto com o espaço de cinco andares.
O armazém da usina de açúcar Domino, no Brooklyn, foi construído em 1927 para abrigar montanhas de açúcar à espera de refino. A usina fechou há uma década, mas, em suas paredes em ruínas, ainda goteja melaço.
Basta ir em frente, porém, que a degradação dá lugar a uma visão límpida: acima dos caibros e medindo 23 metros das patas até as ancas, há uma grande esfinge, recatada como sua prima egípcia, porém reluzindo devido a uma recente cobertura de açúcar.
Kara Walker, a criadora da fera, parece pequena diante de seu colosso, uma ode à mão de obra negra nos canaviais, que optou por fazer grotescamente branca.
Ela intitulou a esfinge de "Uma Sutileza" inspirada nas esculturas de açúcar que eram o foco dos banquetes medievais, embora a obra nada tenha de sutil.
O trabalho foi encomendado pelo grupo Creative Time, conhecido por projetos de arte pública, e ficará exposto até 6 de julho.
Vinte anos se passaram desde que Walker, então com 24 anos, expôs uma instalação inovadora no Drawing Center em Nova York. Hoje, a artista afro-americana faz sucesso global.
Expostas e adquiridas por museus nos Estados Unidos e no exterior, suas silhuetas e animações com recortes de papel usam imagética refinada do século 19 para destacar as distorções causadas pela escravidão.
"Mamãe faz arte cruel", opinou a filha da artista, Octavia, há 12 anos quando ela tinha 4, e isso está bem próximo da verdade.
A MacArthur Foundation, que deu um subsídio de US$ 190 mil (R$ 420 mil) a Walker em 1997, observou que as imagens de Walker exploravam os "vestígios de exploração sexual, física e racial" legados pela escravidão.
Ela retratou o sexo de todas as maneiras entre patrões, patroas e escravos; suas visões panorâmicas do sul antes da Guerra de Secessão incluem cenas de defecação, castração e decapitação.
Certamente tudo isso é muito violento, mas Walker também vê um lado ridículo na sanguinolência de seu trabalho.
A primeira retrospectiva da obra de Walker foi organizada em 2007 pelo francês Philippe Vergne para o Walker Art Center em Minneapolis e depois seguiu para o Whitney Museum em Nova York e várias outras cidades.
Vergne, que é o novo diretor do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, disse que a obra transcende a escravidão, a raça e até a cultura americana.
"Basta abrir um jornal em qualquer lugar do mundo para ver que, infelizmente, abusos motivados por gênero, sexo e poder fazem parte do tecido social".
Walker nasceu em 1969 em Stockton, Califórnia, onde seu pai, Larry Walker, era diretor do departamento de arte da Universidade do Pacífico. A família mudou-se para a Geórgia, estado de origem do pai, em 1983.
Kara estudou pintura em Atlanta, depois fez mestrado em belas artes na Faculdade de Design de Rhode Island. Nos anos 1990, a noção de que o meio artístico há muito tempo era dominado por homens brancos tornou-se muito clara, então ela criou sua técnica com recortes de papel.
Walker aponta um professor, Michael Young, como crucial para sua transformação. Young disse que contribuiu convencendo-a a dar menos importância a seu lado intelectual e aconselhando-a a ser "tão lírica quanto possível você não é uma artista conceitual".
Walker casou-se com um professor de ourivesaria em Rhode Island, do qual se divorciou, e depois se mudou para Nova York. É professora de arte na Universidade Columbia desde 2002.
Atualmente, a usina Domino, no subúrbio da cidade, emprega apenas sete pessoas no processo de refino, ao passo que nos tempos do Brooklyn a empresa chegou a ter dezenas de operários.
Assim, a esfinge de Walker de certa forma fala sobre a extinção do operariado nos Estados Unidos. O edifício da Domino no East River agora pertence ao incorporador imobiliário Jed Walentas, um amante da arte que emprestou o espaço para o grupo Creative Time, enquanto se prepara para demolir a maior parte da estrutura e construir prédios.
Walker escreveu: "O açúcar cristaliza algo em nossa alma americana. Ele é emblemático de todos os processos industriais e da ideia de tornar-se branco. Sendo o branco equiparado com puro e verdadeiro, demanda energia transformar marrom em branco. Há muita pressão".
Walker recorda que quando sua pesquisa a levou a esse lugar, inicialmente, "só conseguia pensar em morte e destruição". Em busca de algo para combater isso "um presente, algo que fosse promissor", ela teve a ideia da esfinge e a concretizou.
Naturalmente, em suas origens na Antiguidade, a esfinge tanto podia ser um enigma quanto uma proteção. A esfinge de Walker está à altura de seus questionamentos e de sua rejeição a respostas fáceis.