A queda em desgraça de uma das mais conhecidas ativistas do Camboja e dúvidas quanto à sua história de ser uma órfã vendida como escrava sexual expuseram o que trabalhadores de organizações assistenciais no país definem como exagero deliberado e, em muitos casos, má-fé na arrecadação de fundos, especialmente por parte dos orfanatos cambojanos.
Somaly Mam era símbolo da luta contra a exploração de mulheres e crianças. No entanto, ela renunciou em maio à presidência da organização de caridade sediada nos EUA que leva seu nome depois que alguns detalhes de sua trajetória, muito alardeada, foram questionados.
Mam, que continua a afirmar que sua história é verdadeira, reforçou a imagem do Camboja como um país indigente e ainda impactado pelo genocídio, o que ajuda a gerar milhões de dólares em doações. Mas ativistas dizem que a história dela é parte de uma história maior, de fraude, cujo objetivo é atrair dinheiro estrangeiro para o empobrecido Camboja. Esse tipo de duplicidade, dizem, levou alguns doadores internacionais a perpetuarem involuntariamente um sistema que mantém milhares de crianças pobres, mas que têm pais, vivendo em orfanatos por anos.
Um estudo do governo cambojano conduzido cinco anos atrás constatou que 77% das crianças que viviam em orfanatos do Camboja tinham pelo menos um progenitor vivo. O governo diz que os orfanatos hoje abrigam mais de 11 mil crianças e que o número de orfanatos registrados subiu de 154, nove anos atrás, para 225, neste ano.
"O número de órfãos vem caindo e o número de orfanatos vem subindo", diz Sarah Chhin, que ajuda a administrar uma organização que encoraja crianças que tenham famílias a voltar para casa.
Em muitos caso, as crianças são instruídas a se fazer passar por órfãs para atrair doações. "A piedade é uma emoção muito perigosa", disse Ou Virak, fundador de uma organização de defesa dos direitos humanos em Phnom Penh.
"O Camboja precisa deixar para trás essa mentalidade de mendicância. E os estrangeiros precisam parar de reagir com base apenas na emoção".
Hong Theary, 22, universitária que passou mais de quatro anos em um orfanato de Phnom Penh, diz que ela foi uma das crianças forçadas a mentir e a suplicar por doações, ainda que seja parte daquilo que define como uma "família feliz". Os pais a colocaram no orfanato porque isso poderia lhe valer uma educação melhor. "Foi uma perda de tempo. Não consegui coisa alguma com isso", disse Theary. "A única pessoa que se beneficiou foi o dono do orfanato".
O diretor do orfanato a instruiu a tratar um casal de canadenses como "pais adotivos".
"Lamento não ter lhes dito a verdade", afirma. "Sempre foram bons para mim".
Por algum tempo, Mam foi considerada a mais famosa órfã do Camboja. Escreveu uma autobiografia que descrevia sua vida de órfã vendida como escrava sexual e era muitas vezes descrita em termos heroicos pela mídia, o que inclui colunas de Nicolas Kristof para o "NYT". Kristof escreveu recentemente que, dadas as dúvidas que as revelações lhe causaram, ele preferiria nunca ter escrito a respeito de Mam.
O Camboja tinha necessidade aguda de orfanatos há 35 anos, depois do domínio do Khmer Vermelho, que causou 1,7 milhão de mortes e deixou muitas crianças órfãs. No entanto, depois que o genocídio acabou e o número de órfãos diminuiu, a atenção mundial à questão pareceu se intensificar. Visitar orfanatos agora é parte do itinerário dos turistas no país.
Desde 2006, o governo cambojano tem a política de devolver as crianças às suas comunidades de origem sempre que possível. Oum Sophannara, diretor do departamento de proteção à criança no Ministério de Assuntos Sociais, disse que os orfanatos muitas vezes não colaboravam. "Acreditam que se mantiverem o ministério de fora, poderão continuar a obter verbas."
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