Homens dividem cobertor alugado por um mercador na cidade de Délhi, na Índia| Foto: DANIEL BEREHULAK/NYT

Quando chega a meia-noite na Velha Délhi e uma névoa grossa e gelada recai sobre a cidade, Farukh Khan se senta em uma esquina ao lado de sua pilha de cobertores, esperando até que seus serviços sejam requisitados.

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Um a um eles aparecem: homens desesperados por uma noite de sono. Os puxadores de riquixás tiram da pilha um dos cobertores de 20 rupias, ou US$ 0,30, e se ajeitam em ângulos estranhos nos assentos de 1,2 metro em seus pequenos veículos. Os diaristas enrolam seus corpos sobre as frias calçadas, muitas vezes se abraçando para conseguir um pouco mais de calor.

Aqueles que não têm dinheiro para pagar Khan acendem fogueiras, mesmo que seja com pedaços de plástico, e se aconchegam esperando que a noite finalmente chegue ao fim.

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Existe alguma cidade em que a economia do sono seja mais estratificada do que Délhi durante o inverno? O cinegrafista Shaunak Sen, que passou dois anos pesquisando os vendedores de sono da cidade para fazer o documentário “Cities of Sleep” (Cidades do Sono) descobriu um enorme mercado paralelo que se formou em torno das multidões de sem-teto de Délhi.

Homem dobra cobertor que foi alugado em uma noite fria em Délhi  

Em alguns lugares, o setor se converte no que ele chama de “máfia do sono”, que controla quem dorme onde, por quanto tempo “e até a qualidade do sono”.

A história do sono privatizado acompanha um padrão conhecido na cidade: depois de décadas de crescimento descontrolado, a incapacidade da prefeitura de fornecer serviços como saúde, água, transporte e segurança deu origem a um robusto setor privado, eficiente o bastante para satisfazer as necessidades de quem pode pagar.

Mas, em vista dos extremos de temperatura típicos dessa cidade, os abrigos muitas vezes são uma questão de sobrevivência. A cada ano, a polícia registra a morte de mais de três mil indigentes, quase sempre homens cuja saúde não suportou mais após anos de vida nas ruas. O inverno representa escolhas especialmente brutais para os trabalhadores sem-teto, que não têm como proteger seus cobertores de ladrões durante o dia, ainda que alguns tentem escondê-los na copa das árvores.

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Homem se levanta após noite com cobertor alugado 

O desafio moral de transformar essa situação em um empreendimento é o foco do filme de Sen, que estreou no festival de cinema de Mumbai em novembro. Um dos personagens do filme, Ranjit, protege um pouco mais seus “adormecidos”, como os chama, permitindo que eles peguem no sono enquanto assistem filmes de Bollywood por 10 rúpias por noite. Outro, um empresário linha dura chamado Jamaal, aumenta o preço de 30 para 50 rupias quando a temperatura cai.

Em uma cena, quando um homem implora, “Senhor, eu sou pobre. Vou morrer”, Jamaal dá de ombros e responde: “Você não está autorizado a morrer. Até isso custa 1.250 rúpias”.

“Veja, o sono é o mestre mais exigente de todos; ninguém pode pará-lo quando ele escolhe chegar. Fomos os primeiros a reconhecer seu incrível potencial econômico”, afirma Jamaal em uma cena do filme.

Como muitos outros setores do comércio da cidade, os vendedores de sono são extremamente organizados e oficialmente não existem. No bairro de Khan, quatro fornecedores de cobertores dividiram as calçadas e espaços públicos em quadrantes e quando a noite cai seus clientes se organizam em colônias de formas irregulares. Alguns voltam ao mesmo lugar há anos.

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Um bêbado de cabelo ensebado foi tropeçando em direção a Khan e implorou. “Meu irmão, por favor”, pedia, e Khan respondeu com um palavrão abafado, agarrando um cobertor e jogando na direção do homem. “Se eu não dou um cobertor, ele morre congelado”, afirmou.

 

Uma série de mortes de “moradores das calçadas” levou a Suprema Corte indiana a aprovar uma lei em 2010 dizendo que as grandes cidades devem fornecer abrigo a pelo menos 0,1% de todos os seus habitantes. No inverno deste ano, a cidade de Délhi expandiu seu sistema de abrigos para acomodar mais de 18 mil pessoas. Contudo, eles estão quase sempre lotados e o número de moradores de rua é enorme – provavelmente superando os cem mil, de acordo com Ashwin Parulkar, que pesquisa a falta de moradia junto ao Centro de Pesquisas em Políticas Públicas de Délhi.

Os vendedores de sono, de acordo com Parulkar, prosperam nas áreas em que o governo falhou. “Eles estão explorando essas pessoas. Existe uma série de políticas públicas feitas para que elas não se tornem vítima desse tipo de exploração.”

Khan, que trabalha no local há oito anos, afirmou que oferece até 100, ou no máximo 200 rúpias de crédito para seus clientes fiéis. (Muitos homens que tremiam de frio e passavam a noite perto de uma fogueira nas proximidades riam descrentes do que ele dizia).

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Ele considera o limite entre as áreas dos vendedores algo tão sagrado que nem caminha por uma área que não seja a sua. Khan faz pagamentos regulares à polícia e aos varredores de rua para que não incomodem os adormecidos, além de manter um bom relacionamento com os batedores de carteira da região, de forma a decidir quem pode e quem não pode ser roubado em sua área. “É complicado, mas o que iria acontecer se eu não estivesse aqui? Mais pessoas iriam morrer.”

Mohammad Sajid, que tem uma perna paralisada pela poliomielite, compartilhava um cobertor com um amigo, que também apresentava sequelas da pólio e que conheceu enquanto lavava pratos em uma lanchonete de rua. Os dois haviam perdido o emprego e a cada dia o dinheiro que tinham guardado se tornava mais escasso: 2 rúpias para usar o banheiro público, 5 rúpias para tomar banho, mais 5 por meia taça de chá e outras 10 por meio cobertor.

Homens se aquecem ao redor de uma fogueira ao acordar em um dos ‘mercados do sono’ 

Seu amigo estava pensando em voltar para seu vilarejo natal, pelo menos até o frio passar, mas Sajid disse que não. “Eu vou voltar, mas não sem antes ganhar a vida por aqui.”

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Khan conhece essa história. Volte daqui a cinco anos e metade desses caras ainda vão estar por aqui, afirmou. “Todo mundo tem uma história triste. Por que alguém com uma história feliz acabaria dormindo aqui?”

Enquanto dizia isso, servia uísque em um copo de plástico. “Eles vão se levantar de manhã, usar o banheiro, e já vão estar prontos para o trabalho. O sistema nunca dorme”, afirmou Kahn.