Estreou sob vaias “Guilherme Tell”, ópera de Rossini dirigida por Damiano Michieletto na Royal Opera House de Londres.
Naquela première de junho, o ultraje foi provocado por uma cena de violência sexual acrescentada a um dos balés da obra.
Para Richard Morrison, do “The Times”, a cena foi “imperdoavelmente repugnante”. No “Telegraph”, Rupert Christiansen a descreveu como “lamentavelmente brutal”, “lasciva” e “em total contradição com o espírito da música”.
Encenar óperas exige que se interpretem as ambiguidades da música de cada uma, e cada apresentação precisa lançar uma ponte sobre o espaço entre a história operística e o presente. É inevitável que as ansiedades e os preconceitos modernos preencham os vazios. E poucas questões são mais pessoais e contenciosas que as representações do estupro.
As representações de violência sexual contra mulheres se multiplicaram em palcos de ópera nos últimos anos, provocando questionamentos. Como um diretor deve inserir no mundo moderno uma trilha sonora e um libreto criados séculos antes? A música de Rossini, sagrada pelo tempo, deve servir de acompanhamento a algo tão horrendo quanto o estupro?
Um padrão notável de violência foi alcançado na produção criada por Calixto Bieito em 2004 de “Die Entführung aus dem Serail” (“O Rapto do Serralho”), na Komische Oper de Berlim. O primeiro verso da ária de Konstanze “Martern aller arten” —“Torturas de Todos os Tipos”—é explorado de maneira que seria inimaginável para uma plateia do século 18 (mamilos são cortados). No entanto, tratando-se de uma ópera em que duas mulheres são raptadas para fazer parte de um harém, a representação de violência sexual feita por Bieito foi justa, embora pouco sutil.
Além disso, a produção vinha acompanhada de um aviso claro, coisa que a Royal Opera House só adotou com “Guilherme Tell” depois do caos criado pela noite de estréia.
Mesmo em óperas em que o sexo não é central, a imposição da agressão masculina a uma mulher em dificuldades parece ter virado maneira simplificada de condenar os males do mundo.
Em comunicado divulgado após a première de “Tell”, o diretor de ópera da Royal Opera, Kasper Holten, disse que a cena de estupro foi incluída para “transmitir a realidade medonha da guerra”.
Como bem sabe qualquer fã de “Game of Thrones”, parece que os horrores do estupro não podem ser transmitidos sem sua representação frequente e detalhada. O problema com muitas dessas cenas é que elas generalizam uma experiência agudamente dolorosa e pessoal e a tornam abstrata, cooptando traumas individuais para fins simbólicos.
A mulher “sacrificada” sobre o palco, geralmente uma atriz ou integrante do coro, não uma personagem principal, raramente tem identidade própria. A personagem geralmente é descartada assim que conclui seu papel ilustrativo.
“Nunca mais vou incluir uma cena de estupro em uma ópera”, escreveu em e-mail a diretora Francesca Zambello, aludindo à sua experiência na direção da estreia de “Two Women”, de Marco Tutino, na San Francisco Opera. “O público ficou muito incomodado. Como diretores, podemos transmitir as atrocidades do mundo passado e presente por meio de imagens e situações dramáticas, mas precisamos usar de nuances.”
Para Zambello, uma cena de estupro não apenas incomoda a plateia como lança uma sombra sobre todo o resto. “Quando mostramos algo tão explícito, em vez de ser o meio isso vira o fim.”
Já a musicóloga Sarah Hibberd, roteirista do Royal Opera para “Tell”, pensa que a cena se justifica. Para ela, “‘Guilherme Tell’ é uma ópera sobre a violência, sobre a violência contra mulheres. O estupro está implícito na história.”
O que torna a cena de estupro tão difícil de digerir é que crítica social e entretenimento se entremeiam. O musicólogo Arman Schwartz, presente à première de “Tell”, disse que “a música do balé é exagerada e grotesca”, mas ainda está dentro dos limites das convenções da ópera. “Para mim”, disse, “é a combinação de violência sexual e pompa operística ‘normal’ que torna a cena especialmente assustadora”.
Apesar de todas suas metas nobres, essa tendência particular de revisionismo de diretores apenas ocasionalmente se debruça sobre a influência ou o poder de mulheres. Não deixa de ser digno de nota que a maioria das produções operísticas de teor sexual carregado foram dirigidas por homens —como, aliás, a imensa maioria das produções de ópera de modo geral.
Zambello comentou: “É evidente que as mulheres são mais sensíveis a isto (a questão da violência contra as mulheres). E as pessoas esquecem que nós, mulheres, compomos mais de metade do público.”