O trem de alta velocidade entre São Petersburgo e Moscou passa algumas vezes por dia pela cidade árida e pobre de Lyuban. Quando se comenta que o presidente da companhia ferroviária estatal russa, amigo íntimo do presidente Vladimir Putin, está a bordo, os funcionários da estação formam fila na plataforma, saudando a modernização da Rússia nos segundos que o trem leva para passar, voando.
Vladimir G. Naperkovsky não é uma dessas pessoas. Ele observou com olhar gélido o trem passar no meio da cidade onde nasceu, com suas ruas esburacadas e construções caindo aos pedaços. Aos 52 anos, tendo fechado seu pequeno negócio de conserto de computadores, Naperkovsky está partindo para outra região do país, na esperança de que não seja tarde demais para começar uma vida nova. "Aos poucos, tudo está apodrecendo", disse, explicando sua visão de Lyuban.
A partir das extremidades das duas grandes cidades da Rússia, uma outra Rússia se estende.
Esse fato não será visível nas Olimpíadas de Inverno em Sochi, em 2014, nem tampouco é visível a partir do trem, construído por engenheiros alemães. É na rodovia entre Moscou e São Petersburgo que se vêem as grandes extensões russas tão ignoradas pelo Estado que parecem estar sendo sugadas para o passado. É um trecho de 700 quilômetros de uma estrada estreita que pode ser percorrido de carro em 12 horas.
À medida que a presença do Estado se distancia desse interior, as pessoas que ali vivem enfrentam escolhas que fazem parte de séculos passados: aquecer suas casas com fogão a lenha, que precisa ser alimentado manualmente a cada três horas, ou queimar óleo diesel, que custa meio mês de salário? Depois que a estrada deteriorou tanto que as ambulâncias não conseguem chegar à casa das pessoas, é seguro permanecer? Quando alguém não consegue vender sua casa, tem como ir embora?
Trajando sandálias de borracha e com os antebraços cobertos de tatuagens, Naperkovsky disse que tinha algo a dizer a Putin, que lidera a Rússia há 13 anos, período de estabilidade política e expansão econômica.
"As pessoas do topo não sabem o que acontece aqui embaixo", disse. "Elas têm seu mundo próprio. Comem alimentos diferentes, dormem em lençóis diferentes, dirigem carros diferentes. Se eu tivesse que descreveraqui em uma só palavra, diria que é um pântano, um pântano estagnado. Assim como foi no passado, continua a ser."
Hoje, quando se percorre a rodovia M10, é possível ver beleza e decadência. A impressão é que o tempo parou. Um ex-carcereiro de presídio gasta suas economias construindo capelas de madeira à beira da estrada, explicando que muitas almas pesam sobre sua consciência.
Um funcionário dos serviços de resgate que trabalhou no acidente nuclear de Tchernobyl ainda aguarda, 27 anos depois, pelo apartamento que os soviéticos lhe prometeram como recompensa. Mulheres sentadas no acostamento com uma fileira de samovares vendem chá para os viajantes. Ao alto, nuvens de vapor desaparecem no ar, como acontecia em 1746, o ano em que as obras de construção da estrada começaram.
Casamento cigano
Um furor tomou conta de uma rua estreita em Chudovo, onde a estrada era de terra e as casas eram construídas com restos de madeira. Estava sendo celebrada uma festa de casamento. A noiva era Mariuka, cigana de 14 anos que parecia uma adolescente contratada para ser baby-sitter do noivo, Ryoma, de 13.
O passado arrastava todos para trás. Antes da queda da União Soviética, o Ministério da Educação exigia que todas as crianças frequentassem a escola. Mas hoje 40% das crianças não estudam, disse Stephania Kulayeva, do Centro Memorial de Antidiscriminação de São Petersburgo. Com isso, a tradição do casamento infantil retornou com força.
Enquanto Mariuka transpunha esse limiar, mulheres em trajes coloridos chegavam para festejar. O mestre de cerimônias arregimentava a multidão. "Mais felizes! Mais felizes! Mais felizes! Opa! Opa! Opa!". Sentado num canto, o pequeno noivo jogava games no celular. Anoiteceu, e os noivos partiram em meio a brindes.
Engarrafamento
O tráfego se arrasta devagar atrás de uma procissão de caminhões de 18 rodas que transportam bens do porto de São Petersburgo, passando por vilarejos com nomes que, traduzidos, equivaleriam a Barata-ville, Xícara de chá-ville e Xadrez-ville.
É a rota de transporte de cargas de tráfego mais intenso da Rússia, mas, para caminhoneiros que respeitam as normas de segurança, ela leva 24 horas para ser percorrida, disse Viktor Dosenko, da Academia Internacional de Transportes. Numa estrada boa, disse ele, o percurso levaria dez horas.
No ano passado, após uma nevasca, 10 mil veículos ficaram presos num engarrafamento que se estendeu por mais de 110 quilômetros, levando alguns motoristas a ficar parados por três dias sem conseguirem sair. O sindicalista Valery Voitko contou que naquela semana os motoristas "nem mais estavam furiosos tinham mergulhado em desespero mudo".
Não é que a Federação Russa não consiga dar conta de obras públicas: as Olimpíadas do ano que vem estão previstas para custar US$ 50 bilhões. A Gazprom, gigante russa do gás natural, liderou recentemente a construção do gasoduto subterrâneo mais longo do mundo. Então por que a rodovia M10 é tão antiquada? Uma rodovia nova, a M11, que terá pedágio, só estará em funcionamento pleno em 2018, momento em que Putin terá passado 18 anos no comando do país.
No ano passado, o secretário de imprensa do presidente, Dmitri S. Peskov, respondeu à pergunta apresentando uma lista dos desafios que Putin já tinha enfrentado, em ordem de urgência. Quando ele chegou à deterioração da infraestrutura, a explicação já tinha acumulado 28 sentenças. "Com certeza", concluiu, "nessas circunstâncias foi impossível pensar em uma estrada entre Moscou e São Petersburgo."
No quintal de Putin
Numa ilha no meio de um lago espelhado nos arredores da cidade de Valdai, estão provas de que alguém se preocupou profundamente em consertar alguma coisa. O mosteiro Iversky, do século 17, usado pelos soviéticos como sanatório para tuberculosos, passou por uma renovação cara e rápida financiada por empresas com vínculos estatais.
Nadezhda Yakovleva conduz visitantes num tour pelo mosteiro restaurado. A casa de campo de Putin fica na margem oposta do lago. "A residência dele fica do outro lado do rio, então o mosteiro faz parte da vista que ele tem", disse. Contou ainda que Putin visita o local com frequência, mostrando tanto interesse que é capaz de se aproximar dos operários para indagar por que estão usando determinada cor de tinta.
O abade, padre Antony, pareceu preocupado com a descrição da guia e disse que Putin só tinha feito duas visitas oficiais ao mosteiro.
A discrição do clérigo é compreensível autoridades da igreja já negaram repetidas vezes os rumores de que Putin teria se casado ali, em segredo, com a ex-ginasta olímpica Alina Kabayeva, ou que teria mandado fechar o acesso ao mosteiro para a realização de um batismo sigiloso.
No vilarejo adjacente à casa de campo de Putin, um operário bêbado contou histórias de coisas que teria visto dentro da residência, como banheiras em que os convidados poderiam se banhar em mel e iogurte. Depois, revelou o valor da pensão que recebe do Exército. "Para ele [Putin], se existe vida fora do perímetro do rodoanel de Moscou, nós somos legumes, não seres humanos."
Isolamento profundo
No auge do verão, a vegetação é abundante, e peônias do tamanho de bolas de vôlei parecem flutuar no ar quente. Depois disso, os bosques se adensam e se tornam mais impenetráveis. Oito quilômetros a oeste da M10 encontra-se o vilarejo de Pochinok, que está sendo pouco a pouco cercado pela floresta.
Centenas de assentamentos ao longo da estrada estão desaparecendo: cidades se tornam vilas, vilas viram floresta. Os soviéticos cortaram o apoio a eles durante as campanhas de eficiência das décadas de 1960 e 1970, em que os povoados foram classificados como "promissores" ou "não promissores".
Mas a morte de um vilarejo é um processo lento. A geógrafa Tatiana Nefyodova descreve esses povoados como "buracos negros" e estima que eles compõem 70% a 80% do noroeste da Rússia, região em que Moscou e São Petersburgo atuam como enormes aspiradores, sugando pessoas e capitais do resto do país.
Quem fica para trás mergulha num isolamento mais e mais profundo. Hoje, quando faz frio, Nina Kolesnikova e seus filhos só tomam um banho por mês. A casa deles cheira a musgo. A estrada que chega até lá está tão deteriorada que nenhum estranho se aventura a passar por ela, fato que é evidente pelos olhares de atenção fascinada das crianças.
Mas Kolesnikova decidiu não ir embora. Indagada sobre o porquê, ela dá uma resposta que seria compreendida por qualquer russo: o ar é limpo. Ela e seus filhos colhem bagas e cogumelos no verão. Produzem seu próprio queijo "cottage" e creme azedo. "Tudo é nosso", explicou.
Mesmo assim, os riscos crescem a cada ano que passa. Na primavera passada, quando a lama era tão funda que "vivemos como se estivéssemos numa ilha", Kolesnikova e seus vizinhos apelaram para o promotor público local, argumentando que o Estado tem a obrigação de manter as estradas transitáveis durante o ano inteiro. A resposta oficial foi "não".
"Eu sou o chefe"
De quando em quando, um dignitário de passagem expressa indignação com a condição precária de alguma cidade pequena.
Ele fuzila o prefeito com o olhar prefeito que, com frequência, é membro leal de sua própria equipe política. O prefeito fica em silêncio, olhando para o chão. Desse modo a responsabilidade moral é transferida para o escalão mais baixo, e o público é apaziguado. O nome dessa farsa, uma das mais comuns na vida política russa, é "eu sou o chefe, você é um tolo".
A maioria dos russos vive em unidades habitacionais construídas no final do período soviético. Um relatório de 2012 do Sindicato de Engenheiros da Rússia divulgou que 20% das moradias em cidades não têm água quente e 10% não têm sistema de esgotos. Na maioria dos lugares a infraestrutura está decaindo em silêncio, aproximando-se do colapso.
Há uma explicação para isso, segundo Natalya Zubarevich, do Instituto Independente de Política Social, de Moscou: comparados com medidas populistas como elevar salários e aposentadorias, os gastos com infraestrutura não ajudam muito a reforçar a popularidade de Putin. Se algo dá errado, o Kremlin sempre tem a opção de demitir um funcionário regional.
Basta perguntar ao general Yevgeny I. Ignatov, ex-prefeito de Torzhok, que renunciou ao cargo dois anos atrás depois de ser repreendido pelo governador regional. Hoje, não tendo mais motivos para falar de modo diplomático, Ignatov revelou que as verbas disponíveis para reparar os sistemas de água e aquecimento, por exemplo, chegavam a apenas 12% do que seria necessário.
"Basta ligar qualquer canal de TV e você ouvirá que os políticos das províncias são todos ladrões, que destruíram tudo, que são idiotas e cafajestes que não fazem nada, nem querem fazer." Irado, o ex-prefeito citou uma frase de Pushkin: "A Rússia vai despertar de seu sono secular, e nossos nomes serão inscritos nos destroços do despotismo".
É um verso instigante. Foi escrito 99 anos antes da Revolução de Outubro de 1917.
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