Para os defensores dos direitos humanos, um dos maiores erros da Europa na crise migratória do Mediterrâneo ocorreu em novembro, com o fim do programa italiano de patrulha e salvamento chamado Mare Nostrum. Sob a liderança da Marinha, o programa salvou milhares de migrantes no mar.
Mas seu fim, em grande parte por razões orçamentais, teve efeitos que vão muito além da redução dos esforços humanitários.
Os italianos também usavam o programa para identificar e punir redes de contrabando responsáveis pelo aumento no tráfico humano em todo o Mediterrâneo.
O programa ajudou promotores a condenarem mais de cem pessoas por contrabando e a indiciar três chefes dos traficantes no Egito. Navios italianos patrulhavam águas internacionais levando a bordo investigadores da polícia.
“A polícia era capaz de intervir diretamente”, disse Giovanni Salvi, o promotor-chefe de Catânia, na Sicília. “Eles conseguiam identificar imediatamente os telefones que estavam sendo usados, os números e os traficantes. Podíamos grampear telefones. Isso nos permitiu gravar conversas entre a ‘nave-mãe’ e os chefões no Egito.”
O programa que substituiu o Mare Nostrum, chamado Triton e gerido pela União Europeia, é menos ambicioso e se restringe às águas imediatamente vizinhas à costa europeia, sem incluir um componente policial robusto.
A decisão dos líderes europeus de não continuarem bancando a conta do Mare Nostrum, de cerca de € 9 milhões (R$ 28,8 milhões) por mês, gerou críticas ferozes após o recente naufrágio que matou mais de 750 migrantes.
Os líderes europeus se comprometeram a triplicar a verba para missões de busca e resgate, além de dedicar novos recursos à luta contra as redes de tráfico humano. Mas críticos dizem que a nova resposta é míope e carece da abrangência da Mare Nostrum.
E a Europa continua às voltas com a questão de como distribuir recursos humanos e financeiros entre as tarefas de salvar vidas no mar, punir traficantes e lidar com as causas do surto migratório no seu local de origem, ou seja, em regiões pobres e devastadas pela guerra, no Oriente Médio e África.
Muitos analistas dizem que a Europa precisa de uma resposta mais holística, incluindo uma reformulação do sistema de asilo e a expansão dos canais de imigração legal, porque o problema da imigração ilegal só tende a piorar.
“Havia uma grande expectativa de que a União Europeia não só daria uma resposta em curto prazo como também ofereceria uma visão de médio e longo prazo”, disse Thomas Huddleston, analista da instituição Grupo de Políticas Migratórias, em Bruxelas. “Não conseguimos.”
Na Sicília, os barcos dos contrabandistas continuam chegando, dia e noite. O gabinete de Salvi tem uma equipe especial de promotores que trabalham com a polícia para enfrentar os traficantes.
A Mare Nostrum (“nosso mar”, em latim) estava longe de ser uma panaceia, disse ele, mas conferia abrangência e imediatismo ao trabalho dos investigadores.
Em pelo menos cinco ocasiões, as embarcações da Mare Nostrum em águas internacionais apreenderam “naves-mães”, como são chamados grandes navios que trazem os migrantes antes de transferi-los para barcos menores em águas internacionais.
Enquanto isso, as investigações policiais podiam ter início já a bordo dos navios de resgate, pois os oficiais se punham a interrogar os imigrantes e a identificar os contrabandistas assim que as pessoas eram resgatadas.
Para efeito de comparação, não havia nenhum agente da polícia italiana na embarcação da Guarda Costeira que primeiro prestou socorro ao naufrágio fatal.
A abrangência das operações de contrabando no norte da África é imensa e multifacetada, desafiando qualquer solução fácil, dizem analistas.
Tuesday Reitano, analista que estuda as redes de contrabando do norte da África, observou que o contrabando de migrantes tornou-se extremamente rentável, com diferentes milícias ou clãs africanos controlando territórios. “Para a África Ocidental e o Sahel, isto é a nova rota da cocaína”.
O aspecto econômico se alterou com a guerra civil na Síria, porque, repentinamente, milhares de sírios ricos se dispuseram a pagar milhares de dólares para embarcarem com destino a países como Suécia ou Alemanha.
Em resposta isso, segundo Reitano, redes de contrabando que eram apenas vagamente ligadas se aglutinaram, cobrando tarifas mais elevadas dos sírios e ao mesmo tempo embarcando menos africanos, que passaram a ser transportados em embarcações menores, para reforçar os lucros.
“Você teve um grande número de sírios e agora, de repente, há um êxodo em paralelo dos africanos. Isso não é um acidente.”
Muitos analistas alertam que os esforços para conter os refugiados e imigrantes na África —sem lhes oferecer canais legais para solicitar asilo— sairão pela culatra.
“Se você bloquear as pessoas na África, elas vão continuar a morrer”, disse Philippe Fargues, diretor do Centro de Política Migratória, em Florença, na Itália. “Talvez não diante de nossos olhos, mas vão morrer em algum lugar na África. É pura hipocrisia.”