Courtney Love irrompeu no Beverly Hills Hotel, em março de 2007, com um advogado a tiracolo e o legado de Kurt Cobain na cabeça.
Pela primeira vez, ela queria dar a um documentarista acesso irrestrito aos arquivos de seu marido, incluindo revistas, obras de arte, filmes caseiros e mais de cem fitas cassete nunca ouvidas, que estavam escondidas num armário de depósito. E ela queria que o heterodoxo cineasta Brett Morgen assumisse o projeto.
“Estava na hora de examinar essa pessoa, humanizá-la e tirar o caráter canônico desses valores que ele supostamente representava —a falta de ambição e esses mitos ridículos que foram construídos ao redor dele”, disse a viúva de Cobain, que é atriz e cantora.
Seria o primeiro documentário autorizado desde que o vocalista do Nirvana cometeu suicídio, em 1994, deixando Love e uma filha de 20 meses de idade.
Só que o filme não correu como esperado.
Morgen, cujos filmes incluem “O Show Não Pode Parar”, uma cinebiografia de Robert Evans, achou que levaria um ano e meio para fazer o documentário. Levou oito. Morgen se defrontou com um personagem enigmático. Teve de contornar uma batalha judicial entre mãe e filha e vasculhar aquele depósito. O resultado, intitulado “Kurt Cobain: Montage of Heck”, foi lançado neste mês.
No final, Morgen, 46, disse ter descoberto um sujeito “complicado, muito mais do que eu imaginava”, um artista que havia sido mal interpretado ou no mínimo limitado a um nicho distorcido.
“Pensei que fosse encontrar um ‘rock star’ cansado da própria fama, porque essa é a narrativa que se estabeleceu em torno dele”, disse Morgen. Ao cavar mais fundo, no entanto, “surgiu um personagem que eu nunca tinha visto antes”.
Sim, o romantizado sofrimento do deus do rock estava lá: a pressão de ser o porta-voz de uma geração; os diários e a arte perturbadora; a espiral de heroína. “Mas também havia um sujeito amoroso, divertido e efusivo, que gostava de algumas coisas da vida.”
Além disso, prossegue o cineasta, a arraigada percepção de Cobain como um coitado impotente e sem ambição, dominado por Love, foi “estilhaçada”. “Nos filmes caseiros que vi, Kurt não é manso. Courtney não o está dominando. Acho que o filme vai desafiar as percepções das pessoas.”
Em um vídeo caseiro de 1992 que foi incluído no filme, Cobain e Love aparecem vivendo drogados e largados, em Los Angeles. De pé no banheiro, enrolado numa toalha e com creme de barbear no rosto, Cobain provoca Love dizendo que os tabloides a retratam como um monstro devorador de homens. Love finge fazer bico.
Morgen disse que as 108 fitas cassetes que ele achou no depósito foram o material mais esclarecedor. Elas revelam o músico ainda em formação, experimentando com a guitarra (cantando a música “And I Love Her”, dos Beatles, por exemplo), falando ao telefone, rindo, ouvindo pop oitentista (“Kids in America”, de Kim Wilde), trabalhando em versões embrionárias de canções do Nirvana (“Polly”) e narrando histórias brutais sobre sua adolescência angustiada.
“Montage of Heck”, que estreia em 4 de maio na HBO, enfatiza uma passagem de áudio como uma janela fundamental para a psique de Cobain.
Na longa gravação, o artista conta que na época do colégio tentou perder a virgindade com uma menina “muito gorda” que frequentava aulas para alunos especiais. Quando seus colegas descobriram isso, Cobain sentiu-se humilhado. “Eu não podia suportar o ridículo”, diz ele na fita. “Aí fiquei bêbado e chapado e saí andando pelos trilhos do trem”, onde se sentou, na esperança de morrer atropelado.
“Para mim, essa é a mídia mais interessante e reveladora que ele gravou”, disse Morgen. O filme liga os pontos entre aquele momento de desespero na adolescência e o suicídio de Cobain, o que sugere que a humilhação —Cobain suspeitava que Love o traíra— contribuiu fortemente para o seu fim.
Fãs do Nirvana, sem dúvida se verão na obrigação de assistir a “Montage of Heck”, mas alguns podem não gostar das conclusões de Morgen.
Há 21 anos se discute o que levou Cobain a se matar, observou Charles Cross, autor de “Mais Pesado que o Céu”, considerada a biografia definitiva de Cobain. “A verdade é que esse homem era muito atormentado e cheio de contradições”, afirmou.
Morgen também encerra abruptamente o seu filme pouco antes do suicídio de Cobain. “O problema com a maioria dos filmes biográficos é que eles tentam dar conta de tudo o que você vê na Wikipedia”, disse Morgen. “Não dá para cobrir tudo. Para isso servem os livros.”