Diego Gómez percorreu a feira livre de um bairro pobre, distante das avenidas elegantes do centro de Buenos Aires. Não ficou lá por muito tempo. "Meu salário não está valendo nada", disse o ferreiro e pai de quatro filhos, que ganha menos de US$ 800 por mês. Ele comprou pouca coisa e foi embora.
"É injusto sofrermos", comentou, aludindo à alta dos preços que se seguiu à desvalorização do peso argentino em 19% em janeiro, que transmitiu ondas de choque aos mercados emergentes.
A situação de Gómez é comum na Argentina, cuja população enfrenta uma das inflações mais altas do mundo. Essa situação provoca insatisfação social, incluindo uma greve de professores e paralisações de policiais, que levaram a saques em grande escala.
De acordo com um índice extraoficial publicado por políticos da oposição, os argentinos enfrentaram alta de quase 30% nos preços no ano passado. O governo, que no passado já foi acusado de manipular dados econômicos, diz que a inflação foi de apenas 10,9% em 2013. Em 2014, segundo relatório recente do J.P. Morgan, de Nova York, a inflação pode chegar a 45%.
Os aumentos de preços são parte do cotidiano. Um açougue abandonou sua lousa de preços no ano passado; hoje seus funcionários atualizam os preços diariamente numa folha de papel. Mulheres pedem aumento das pensões alimentícias pagas por seus ex-maridos. Empresas têm dificuldade em lidar com reivindicações salariais. As emissoras mandam repórteres para a rua com cem pesos (cerca de US$ 12,70) para avaliar o enfraquecimento do poder de compra da cédula de peso de mais alto valor. Nas ruas as pessoas manifestam sua revolta com os preços de tudo, desde bolos até geladeiras. Os proprietários de cafés dizem que seus fregueses estão pedindo menos comida. Atacadistas e lojistas têm dificuldade em definir os preços de mercadorias importadas.
Os aumentos salariais reduziram o impacto da inflação e alimentaram o consumo interno, incluindo as vendas recordes de carros novos no ano passado. Mas a expectativa agora é que os salários reais sofram uma queda, levando um oposicionista destacado a compará-los a "água que escorre pelos dedos".
O governo congelou os preços de produtos como legumes, carne, alimentos enlatados e até alguns materiais escolares. Outdoors incentivam os argentinos a ligar para um telefone especial para denunciar as lojas que desrespeitam o congelamento dos preços.
"Temos que fiscalizar os preços", disse a presidente Cristina Kirchner a milhares de partidários diante do Congresso neste mês. "Não deixem que eles roubem vocês", falou, aludindo ao que ela e seus ministros consideram ser um bando de empresários vorazes.
A nefrologista Lucía Martínez, 60, que estava no meio da multidão, disse que os aumentos de preços são desproporcionais, comparando-os a um "golpe por baixo do pano". Pôsteres de uma organização pró-governo acusavam executivos de empresas de roubo. "Eles brindam com champanhe enquanto as pessoas se dividem", disse Sandra Bustos, 50, dona de uma barraca na feira.
Desiludidos com o governo, os argentinos acham que os controles são sintomas de uma política feita de modo aleatório. "A campanha é inútil", opinou um contador aposentado que se identificou apenas como José. "É uma regra que é mais velha que o mundo. Se você imprime dinheiro, há inflação."
A oferta monetária aumentou 25% em 2013, segundo o presidente do Banco Central.
O ministro da Economia de Cristina Kirchner, Alex Kicillof, aderia à teoria marxista quando era professor universitário e já minimizou a ligação entre expansão monetária e inflação. Ele critica a ideia de que os governos latino-americanos devem usar os índices de inflação para avaliar o êxito econômico.
Não é de hoje que a Argentina passa por ciclos de inflação, começando com os aumentos de preços provocados por influentes mercadores britânicos pouco após a independência do país, em 1810. Mais recentemente, a crise financeira de 2001-02 desencadeou turbulência política, desvalorização do peso e inflação. Uma década antes disso, a hiperinflação provocou saques e forçou o presidente Raúl Alfonsín a entregar a Presidência. "As pessoas já passaram por tantos processos inflacionários que uma escalada dos preços não é apenas um fenômeno econômico, é também sociológico", comentou o analista político Carlos Germano.
"As crises viraram rotina", disse o instalador de ar condicionado Hugo Fahler, 57. Ele conta que hoje cobra quase o dobro do que cobrava antes da desvalorização do peso, porque o custo de alguns materiais subiu 160%. "Está me lembrando de Alfonsín. O próximo governo vai ter uma confusão federal para resolver."
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