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Justiça falha no Quênia

As acusações contra o presidente Uhuru Kenyatta, decorrentes da violência de 2007 no Quênia foram retiradas. Mais de 1.100 pessoas morreram em conflitos após as eleições | Ben Curtis/Associated Press
As acusações contra o presidente Uhuru Kenyatta, decorrentes da violência de 2007 no Quênia foram retiradas. Mais de 1.100 pessoas morreram em conflitos após as eleições (Foto: Ben Curtis/Associated Press)

Quando promotores da Corte Penal Internacional declararam no final de 2009 que iriam perseguir os responsáveis pela violência que varreu o Quênia após as eleições de 2007, muitas pessoas se alegraram: os quenianos, há muito habituados a ver seus líderes se safarem de quase tudo, puseram suas esperanças na Corte Internacional. Infelizmente, elas foram frustradas.

Em uma ironia curiosa, a Corte localizada em Haia inadvertidamente reanimou as tensões no Vale do Rift, área etnicamente dividida que foi palco dos piores conflitos em 2007.

No dia 5 de dezembro, os promotores da Corte anunciaram que arquivariam o caso contra o Presidente Uhuru Kenyatta, admitindo que não teriam nenhuma chance de garantir a condenação por acusações de crimes contra a humanidade durante os violentos episódios de 2007. Essa decisão significa que quatro dos seis quenianos que a acusação identificou como sendo os maiores responsáveis por incitar tumultos que levaram à morte de mais de 1.100 pessoas e ao deslocamento de outras 600 mil após as eleições, nunca serão julgados. Além do caso de Kenyatta, juízes já haviam arquivado acusações contra um antigo comandante da polícia, um político do Vale do Rift e um ex-chefe do serviço público.

Promotores da Corte Internacional foram cautelosos ao indiciar seis suspeitos, três de cada um dos dois principais campos políticos que disputavam o poder em dezembro de 2007. A disputa entre o atual Presidente, Mwai Kibaki, membro da etnia Kikuyu, e seu principal rival, Raila Odinga, um Luo, desencadearam semanas de violência depois que partidários de Odinga acusaram Kibaki de fraude eleitoral. O maior apoio a Odinga veio da comunidade Kalenjin, que há muito acusava camponeses Kikuyu de expulsá-los de fazendas que ocupavam há décadas no fértil vale do rio Rift.

Com o fim do caso Kenyatta, os dois casos restantes em Haia envolvem somente os membros do grupo étnico Kalenjin: William Ruto, vice-presidente de Kenyatta, e um radialista, Joshua Sang, ambos acusados de incitar a violência em massa.

Embora Ruto e Kenyatta estivessem em lados opostos em 2007, os dois posteriormente se uniram para formar a Jubilee Alliance (Aliança do Jubileu) e vencer as eleições de 2013, após a revisão da constituição do país. Mas sua coalizão, projetada para aliviar as tensões étnicas e promover a unidade nacional, pode acabar caso se suspeite que a Corte Internacional tenha perseguido uma justiça seletiva.

Kenyatta, cujo caso foi visto como um teste crucial da legitimidade da Corte Internacional, insistiu que os promotores retirassem as acusações contra Ruto, que também é acusado de estimular a violência. Do mesmo modo agiu o Conselho de Anciãos do Vale do Rift, que advertiu em uma carta à Corte Internacional que o caso contra o vice-presidente "poderia causar conflito no país caso não fosse arquivado".

Os procuradores põem a culpa do fracasso das tentativas de processar Kenyatta em um padrão de intimidação e suborno de testemunhas, e na recusa do governo queniano em fornecer informações. O mesmo aconteceu com a tentativa de processar Ruto.

Em muitos aspectos, isto sugere um esforço dos promotores para encobrir seus próprios fracassos. Desde o princípio, autoridades tais como o ex-assistente do secretário de estado para assuntos africanos dos Estados Unidos, Jendayi Frazer, haviam avisado que o caso de Kenyatta era "fraco e baseado em boatos". E pelo menos uma juíza em Haia, Christine Van den Wyngaert, criticou severamente os esforços dos promotores.

Os casos quenianos destacam a necessidade de reformas institucionais. O tribunal precisa de supervisão independente e os meios pelos quais seus juízes são nomeados devem ser revistos para que o mérito valha mais do que considerações políticas. Mas o significado disso para a paz no Quênia é uma questão mais urgente, particularmente no Vale do Rift.

O planalto fértil tem atraído um grande número de migrantes, principalmente os membros da Comunidade Kikuyu. O povo de Kalenjin afirma que os Kikuyu se beneficiaram do clientelismo político para se apropriar do que consideram sua terra ancestral. Os Kikuyus argumentam que compraram a terra legitimamente.

É fácil perceber por que a Corte Internacional foi inicialmente abraçada por muitos quenianos como forma de combater a impunidade política da liderança do país. Mas o fim das acusações mostra as limitações da justiça internacional.

Os quenianos precisam aprender que é preciso assumir maior responsabilidade por seus próprios assuntos, exigindo que o governo faça o mesmo dentro de suas próprias instituições. Os problemas causados pela violência étnica são melhor resolvidos internamente, não em tribunais estrangeiros.

A população precisa resolver as injustiças que incitam a violência comunitária. Não podemos permitir que nossos líderes explorem queixas legítimas dos cidadãos para fins políticos. Não é por acaso que a violência étnica no Vale do Rift, em 1992, 1997 e 2007 aconteceu durante os anos de eleição presidencial.

Para interromper esse ciclo mortal, quem incitar o combate deve ser punido. Talvez a lição tirada pelos quenianos com essa desilusão com a Corte Internacional é que a responsabilidade começa em casa; ela não é facilmente terceirizada.

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