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Análise da notícia

Líderes dos EUA não decifram o enigma Putin

O presidente Vladimir V. Putin recusa gestos de boa vontade do Ocidente desde que assumiu o posto | Sergei Chirikov/Agence France-Presse / Getty Images
O presidente Vladimir V. Putin recusa gestos de boa vontade do Ocidente desde que assumiu o posto (Foto: Sergei Chirikov/Agence France-Presse / Getty Images)

Bill Clinton o considerava frio e preocupante, mas previu que ele seria um líder duro e capaz. George W. Bush quis transformá-lo em amigo e parceiro na guerra contra o terror, mas se decepcionou com o passar do tempo.

Barack Obama tentou jogá-lo para escanteio ao fortalecer seu protegido no Kremlin, abordagem que funcionou durante um tempo, mas que foi se deteriorando constantemente a ponto de as relações entre Rússia e Estados Unidos estarem agora no seu pior momento desde o fim da Guerra Fria.

Durante 15 anos, Vladimir V. Putin confundiu presidentes norte-americanos enquanto estes tentavam decifrá-lo, e terminaram por julgá-lo erroneamente repetidas vezes. Ele desafiou as suposições e recusou as tentativas de amizade. Putin discutiu, deu sermões, induziu ao erro, acusou, fez esperar, deixou adivinhar, traiu e se sentiu traído por eles.

Cada um do seu modo, os três presidentes tentaram forjar uma relação histórica nova ainda que elusiva com a Rússia, e acabaram vendo essas iniciativas serem torpedeadas pelo mestre em artes marciais e ex-coronel do KGB. Imaginaram-no como algo que ele não era ou supuseram que poderiam administrar um homem que se recusa a ser administrado. Os presidentes o viam através de sua própria perspectiva, acreditando que Putin encarasse os interesses russos como eles pensavam que ele deveria encarar. E eles subestimaram seu profundo sentimento de mágoa.

Nessa crise na Ucrânia, o debate agora passou de como trabalhar com Putin a como detê-lo. "Ele mesmo se declarou", disse Tom Donilon, ex-consultor de segurança nacional de Obama. "Essa é a pessoa com quem você deve lidar. Desejar o contrário não é uma política".

Em retrospecto, auxiliares dos três presidentes oferecem visões similares: os chefes nem de longe eram ingênuos em relação a Putin e o viam sem ilusões, mas sentiam que havia pouca escolha além de tentar estabelecer um relacionamento melhor. Pode ser que algumas de suas políticas tenham prejudicado as chances disso acontecer, pois estimularam o descontentamento de Putin, quer com a expansão da Otan, a guerra do Iraque ou da Líbia, mas no fim das contas, argumentam os auxiliares, os presidentes estavam lidando com um líder russo em desacordo com o Ocidente.

Os presidentes costumam encarar autocratas como Putin como colegas estadistas, disse Dennis Blair, primeiro diretor de inteligência nacional de Obama. "Eles devem pensar em ditadores da mesma forma como pensam a respeito dos políticos norte-americanos do outro partido, oponentes que sorriem quando a ocasião é propícia e cooperam quando podem lucrar, mas que no fundo estão tentando tirar o poder dos EUA, querem colocar os EUA de joelhos se tiverem a oportunidade e somente entram em acordo se os Estados Unidos mostrarem mais força do que eles."

Ninguém em Washington ainda pensa em Putin como parceiro. "Ele vai se deitar pensando em Pedro, o Grande, e acorda pensando no Stalin", afirmou o deputado Mike Rogers, presidente republicano do comitê de inteligência da Câmara, ao programa televisivo "Meet the Press" da rede NBC. "Nós precisamos compreender quem ele é e o que pretende. Talvez isso não combine com a forma pela qual vemos o século XXI."

Clinton foi o primeiro presidente a encontrar Putin, embora os mandatos não tenham se sobreposto por muito tempo. Ele passara boa parte da presidência construindo um relacionamento com o antecessor de Putin, o presidente Boris Iéltsin.

Quando a escolha de Putin foi ratificada na eleição de março de 2000, Clinton telefonou para parabenizá-lo e mais tarde escreveu: "Desliguei o telefone pensando que ele era durão o suficiente para manter a Rússia unida".

Entretanto, Clinton tinha suas preocupações, principalmente enquanto Putin travava uma guerra brutal na república separatista da Chechênia e pressionava a imprensa independente. Em particular, ele pediu que Iéltsin vigiasse o sucessor.

Bush assumiu o cargo cético em relação a Putin, chamando-o em particular de "um cara frio", mas gostou dele durante o primeiro encontro dos dois na Eslovênia, em junho de 2001, depois do qual fez o agora famoso comentário sobre ter visto a alma russa.

Porém, a relação foi estremecida durante a guerra do Iraque e com a aceleração da repressão do Kremlin sobre os dissidentes. Quando do segundo mandato de Bush, os dois brigavam pela democracia russa.

Em 2006, Bush disse a um líder visitante que estava quase sem esperança de converter Putin. "Acho que Putin deixou de ser um democrata. Ele é um czar. Acho que nós o perdemos."

O então novo secretário da defesa de Bush, Robert M. Gates, voltou do primeiro encontro com Putin e relatou aos colegas que "olhei nos olhos de Putin e, como esperava, vi um assassino de sangue frio".

No primeiro semestre de 2008, Bush encaminhou a entrada da Ucrânia e da Geórgia na Otan, o que dividiu a aliança e enfureceu Putin. Em agosto daquele ano, os dois líderes estavam em Pequim por causa das Olimpíadas quando se soube que tropas russas estavam marchando sobre a Geórgia.

No livro de memórias, Bush contou ter repreendido Putin por se deixar provocar por Mikheil Saakashvili, então presidente georgiano contrário a Moscou. "Eu venho lhe dizendo que Saakashvili tem sangue quente", Bush disse a Putin. "Eu também tenho sangue quente", respondeu Putin. "Não, Vladimir", retrucou Bush. "Você tem sangue frio."

Bush reagiu à guerra enviando ajuda humanitária à Geórgia, transportando suas tropas do Iraque de volta para casa, enviando um navio de guerra para a região e engavetando o acordo nuclear com a Rússia.

"Nós e os europeus mandamos por água abaixo o relacionamento no final de 2008", contou Stephen J. Hadley, consultor de segurança nacional de Bush. "Queríamos passar o recado de que, estrategicamente, aquilo não era aceitável. Agora, vendo em retrospecto, deveríamos ter tido mais sanções econômicas."

Ao assumir o cargo poucos meses depois, Obama decidiu pôr um fim ao isolamento da Rússia com uma reforma nas relações. Ele queria tentar criar um relacionamento não virando amigo de Putin, mas dando um drible nele.

Putin deixou a presidência e colocou o auxiliar, Dmitri A. Medvedev, em seu lugar, enquanto assumia como primeiro-ministro. Obama decidiu tratar Medvedev como se ele fosse o líder de verdade.

Um telegrama diplomático obtido mais tarde pelo WikiLeaks resumia a estratégia: "Cultivar relações com o presidente russo Dmitri Medvedev na esperança de que ele se torne um líder independente de Vladimir Putin".

Durante um tempo, a aposta de Obama em Medvedev pareceu funcionar. Contudo, em 2012, Putin voltou à presidência, colocando Medvedev de lado e deixando claro que não permitiria que Obama passasse por cima dele.

Putin ignorou as tentativas de Obama de abrir novas conversações sobre armas nucleares e deu asilo a Edward J. Snowden, que vazou dados de segurança nacional. Obama cancelou uma viagem a Moscou, deixando claro que não tinha conexão pessoal com o líder russo.

Enquanto Obama tentava decidir o que fazer para dar um fim à crise na Ucrânia, ele procurou outros líderes que ainda mantêm um relacionamento com Putin, incluindo a chanceler alemã, Angela Merkel. Em particular, ela disse a Obama que após conversar com Putin ela pensou que ele estava "em outro mundo". O secretário de Estado, John Kerry, afirmou publicamente mais tarde que o discurso de Putin sobre a Crimeia está "em desacordo com a realidade".

Isso deu origem a um debate em Washington. Será que Putin mudou ao longo desses 15 anos e se tornou um perturbado de alguma forma ou será que ele simplesmente vê o mundo de uma maneira muito diferente da do Ocidente?

"Ele não é maluco, mas vive na Rússia do passado – uma versão do passado que ele mesmo criou", afirmou Fiona Hill, principal diretora de inteligência sobre a Rússia durante a presidência de Bush e coautora de um livro sobre Putin. "Seu presente é definido por esse passado e não existe uma visão coerente do futuro", argumentou Hill. "Ele certamente irá continuar reafirmando e recuperando a influência sobre territórios e povos. E depois o quê?"

Essa é a pergunta que o presidente dos Estados Unidos – e provavelmente o próximo – fará.

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