O livro didático, aquele com um lêmure de olhos arregalados espiando do canto da capa, há anos é usado pelos alunos do ensino médio daqui para as aulas de Biologia que, com ele, aprendem tudo sobre mitose e meiose, fotossíntese e anatomia. Agora, porém, a diretoria da escola desse subúrbio de Phoenix votou pela censura de duas de suas páginas que falam sobre doenças sexualmente transmissíveis e contraceptivos incluindo a mifepristona, substância que pode prevenir ou interromper a gravidez.
Uma lei estadual sancionada há três anos exige que as escolas ensinem "a preferência, estímulo e apoio ao nascimento e adoção" e não ao aborto, e a diretoria decidiu que as tais páginas infringem a legislação embora o Departamento de Educação do Arizona, que examinou o livro, diga que não.
A polêmica se transformou em referendo sobre a lei de 2012, com os defensores dizendo que o conteúdo do livro deve ser removido o mais rápido possível e os críticos se opondo por vário motivos: técnicos, éticos e pedagógicos mas a diretoria da escola de Gilbert segue firme em seu propósito, tentando encontrar um jeito de remover o material apesar da resistência de pais, moradores, da União Americana pelas Liberdades Civis e até do superintendente do distrito.
"Trata-se da lei; temos que obedecê-la. Quem não gostar dela, que fale com os legisladores estaduais", diz Julie Smith, membro do conselho que rege as escolas públicas de Gilbert e mãe preocupada com o conteúdo do livro.
Há quem diga que a diretoria está interpretando a lei de forma errônea e que a censura do livro viola os direitos dos alunos, previstos na Primeira Emenda e a lei de direitos autorais.
"A solução não está em eliminar as páginas de um livro de Ciências. Além de ser incorreta, é uma interpretação extrema, que passa uma mensagem totalmente errada. É sempre melhor oferecer mais informações", explica Alessandra Soler, diretora executiva do ACLU do Arizona. Foi em uma reunião para lá de atribulada, em outubro, que a diretoria decidiu, por três votos a dois, que as duas páginas do "Campbell Biology: Concepts and Connections" teriam que ser retiradas. A questão levou a troca de ofensas nas reuniões, boatos sobre sessões secretas de eliminação de dados e confrontos raivosos em supermercados.
Christina M. Kishimoto, a superintendente escolar de Gilbert, que assumiu o cargo em meados de 2014, se viu no fogo cruzado da disputa. "Toda hora recebo e-mails de Fulano e Beltrano ameaçando fazer isso e aquilo. É uma troca sem fim de acusações que na verdade só funciona como distração das questões mais importantes e irrita as famílias."
O aborto é uma questão legal de destaque no Arizona. Em Janeiro, a Suprema Corte dos EUA se recusou a analisar o caso de reinstauração de uma lei estadual, sancionada em 2012, mas impugnada logo em seguida, que proibia abortos após 20 semanas de gestação. Em março, um juiz federal de Tucson se recusou a bloquear a lei estadual extremamente rígida, também promulgada em 2012, sobre o uso de medicamentos abortivos.
Julie Smith disse que voltava com a família da igreja, em janeiro passado, quando seu filho comentou o que havia no livro escolar. "Eu quase perdi o controle do carro", descreve.
"Eu sou católica e os católicos não se valem da contracepção. É um pecado grave", completa.
Em agosto, a direção da escola pediu ajuda ao Departamento de Educação do Arizona. Tanto advogados como especialistas consideraram que o material não infringe a lei, contanto que os professores forneçam um contexto adequado.
"Só pelo fato de fazer uma afirmação, de mencionar um medicamento e sua função, não significa que você defende esta ou aquela medida. Não é assim que os livros didáticos funcionam. Aliás, não é assim que funciona o exercício acadêmico", relata Chris Kotterman, vice-diretor de desenvolvimento de políticas e relações governamentais do departamento. A criadora da lei, senadora republicana por Phoenix, Nancy Barto, discorda. Para ela, a simples descrição do funcionamento de substâncias como a mifepristona não pode ser considerada "neutra", pois "não promove a adoção e o nascimento".
Há pais que se mostraram preocupados com o fato de que a censura possa colocar os filhos em desvantagem na hora de prestarem o exame nacional. Para Jill Humpherys, uma das integrantes da diretoria que é contra a eliminação das páginas, não há melhor maneira de chamar a atenção para o material do que fazendo sua edição.
"Se você entrega um livro com trechos censurados ou omitidos a um adolescente, certamente eles serão as partes mais lidas. Eu tenho experiência, pode crer", diz ela, que é mãe de cinco filhos.