Fernet é uma bebida alcoólica italiana de gosto amargo| Foto: Martin Barzilai/The New York Times

Na coxia de um salão de dança, o percussionista Hugo Núñez abre o zíper de sua mochila e tira duas garrafas: uma de fernet, uma bebida alcoólica italiana de gosto amargo, e outra de Coca-Cola. Depois de misturar os dois em um copo, Núñez bebe o líquido espumante cor de sépia. Essa sequência é repetida por jovens que se divertem por toda a cidade.

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Buenos Aires domina a vida cultural e política da Argentina, mas Córdoba, uma cidade do interior de 1,3 milhões, ficou conhecida por se rebelar contra a capital para projetar sua própria identidade. Isso pode ser visto nas tendências de voto, na paixão por corridas de rally e no “cuarteto”, música tocada em salões de dança lotados.

A combinação de Coca-Cola com fernet --um licor pungente, cor de âmbar escuro com gosto de alcaçuz negro-- surgiu como uma das marcas culturais da cidade.

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“Todo mundo tem um fernet na mão”, conta Carlitos Jiménez, 64, cantor de cuarteto, falando sobre seu público. “Ele é horrível sozinho”, afirma, “mas, com Coca-Cola, é outra coisa.”

Os habitantes de Córdoba bebem tanto fernet que acabaram provocando um boom na produção nacional. Cerca de uma década atrás, os produtores da Argentina saciavam a demanda com cerca de nove milhões de litros. Em 2013, a produção chegou a 57 milhões de litros.

Antes, o fernet era bebido apenas como aperitivo ou como remédio para dores de estômago. Isso mudou há cerca de 20 anos, quando os jovens passaram a misturá-lo com Coca-Cola, não se sabe por qual razão.

Apesar de a bebida ser popular em toda a Argentina, a paixão por fernet alcançou outro patamar em Córdoba. Com apenas 8% da população total da Argentina, Córdoba e suas cidades satélites somam mais de um terço do consumo nacional da bebida, de acordo com um relatório sobre consumidores de 2013.

A região onde Córdoba se encontra, na parte central da Argentina, acaba lhe dando um ponto de vista particular e gerando um fluxo de ideias que movimentam subgrupos rebeldes, explica Walter A. Tolaba, 83, proeminente comentador cultural da região.

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Córdoba foi o local de nascimento de levantes nacionais, como as reformas universitárias há um século e, em 1969, protestos que levaram à queda de um ditador.

A cidade se orgulha de estabelecer suas próprias tendências culturais. Quando a música cumbia fez sucesso em toda a Argentina nos anos 1990, Córdoba permaneceu um bastião do cuarteto. Todos os anos, fãs acampam na serra para assistir à etapa local do Campeonato Mundial de Rally.

“Humor, cuarteto, rally e fernet”, cita Franco Linares, 23, em um bar do centro, listando orgulhosamente alguns dos elementos que definem Córdoba. Enquanto alguns argentinos em outras partes do país continuam sem entender a aclamação da bebida, poucos em Córdoba pensam que a mistura de fernet e Coca-Cola, como a própria cidade, perderão seu lugar privilegiado por aqui.

“Tivemos algumas modas”, conta Ricardo Verón, 62, contrabaixista de Jiménez. No entanto, depois de lembrar de alguns favoritos do salão de dança, como gim e vinho branco, ele aponta para seu copo de fernet com Coca-cola e diz: “Isso vai durar”.