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Na doença e na riqueza

Bengalesa cuida de seu marido, um operário que ficou ferido no desabamento do teto de uma fábrica; apesar de recentes melhoras, o sistema de saúde em Bangladesh ainda é precário | Shaikh Mohir Uddin/Associated Press
Bengalesa cuida de seu marido, um operário que ficou ferido no desabamento do teto de uma fábrica; apesar de recentes melhoras, o sistema de saúde em Bangladesh ainda é precário (Foto: Shaikh Mohir Uddin/Associated Press)

Quando eu tinha cinco anos, minha prima Hafsa caiu do telhado da nossa casa, em Dhanmondi, bairro residencial de Dacca.

Ela subiu por uma janela do segundo andar e se arrastou ao longo da calha até se desequilibrar e despencar na garagem. Abalados, a levamos às pressas para o hospital mais próximo, uma clínica particular.

O médico deu uma olhada —ela estava inconsciente, com um ferimento sangrando na cabeça— e se recusou a tratá-la. “Levem-na ao Medical”, disse. “É o único lugar onde podem ajudá-la.”

O médico se referia ao nome em inglês do Hospital e Faculdade de Medicina de Dacca, o maior hospital público da capital. Apesar de a maioria das crianças da geração da minha mãe ter nascido lá, já não era o tipo de lugar aonde pessoas como nós íamos. Estava superlotado e sem verbas, e abundavam histórias de terror sobre suas condições insalubres e instalações inadequadas.

Ainda assim, sem escolha, levamos Hafsa ao pronto-socorro. Cuidaram de uma fratura em seu pulso e diagnosticaram uma concussão. Ela voltou para casa algumas semanas mais tarde e se recuperou completamente. Seu tratamento saiu quase de graça.

Desde o acidente de Hafsa, há 26 anos, o Medical continuou pobre, enquanto novos hospitais particulares eram abertos por todo o país.

Existem hoje cerca de 3.000 clínicas e hospitais particulares cadastrados, e mais de 5.000 centros de diagnóstico privados —todos eles, no entanto, fora do alcance da maioria dos bengaleses. Tampouco eles estão imunes às histórias de terror.

Recentemente, a imagem de uma clínica indiana dando desconto de 50% para os pacientes de Bangladesh apareceu no meu feed do Twitter, junto ao seguinte comentário de um amigo: “Os hospitais corporativos de Calcutá adoram bengaleses com grana e doenças”. Embora essa propaganda tão ostensiva fosse novidade para mim, a notícia de que bengaleses estão enchendo as clínicas de países vizinhos não me surpreendeu.

Nos bairros mais elegantes de Dacca, outdoors gigantes promovem os serviços de hospitais particulares em Déli e Bancoc. Agentes reservam tudo para você, dos voos às consultas médicas. Hospitais especializados em coração, clínicas oncológicas e até mesmo ambulâncias aéreas —tudo clama por nosso dinheiro.

O sistema de saúde em Bangladesh está progredindo, mas continua complicado.

Pelo lado positivo, há várias iniciativas bem-sucedidas de saúde pública, especialmente as dirigidas às mulheres. Diversas estratégias comunitárias que aproveitam as redes de prefeituras, postos de saúde e ONGs estão trazendo melhorias no atendimento básico de saúde.

Essas iniciativas colocam Bangladesh no caminho de cumprir muitas das Metas de Desenvolvimento do Milênio, estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, e permitem que nos vangloriemos perante nossos vizinhos. O baixo gasto público com saúde e a média de apenas 7,7 profissionais do setor para cada 10 mil habitantes (bem abaixo da meta da Organização Mundial da Saúde, de 23 por 10 mil) levaram a revista médica “The Lancet” a descrever o sucesso de Bangladesh como “um dos grandes mistérios da saúde global”.

Parte da resposta, no entanto, pode estar no fato de que quem pode pagar vai se tratar no exterior. Em 2010, a OMS informou que só a Índia atrai por ano cerca de 50 mil bengaleses que buscam tratamento.

Ricos ou desesperados, todos citam a mesma razão para o tratamento no exterior: não confiam no sistema em Bangladesh.

As histórias de terror, naturalmente, têm participação nisso. Elas sempre parecem terminar da mesma maneira: a família do paciente acaba sem qualquer reparação.

O Ministério da Saúde e Bem-Estar Familiar deveria supervisionar os padrões hospitalares, mas jornalistas e médicos relatam que até hoje nenhum hospital foi fechado e nenhum médico foi responsabilizado por erros; tampouco qualquer profissional médico ou administrador hospitalar foi condenado judicialmente até hoje.

Como em tantas áreas da vida em Bangladesh, há um nível surpreendente de sucesso e também um perene potencial de catástrofe —aparentemente sem meio-termo.

O sistema público de saúde range sob as pressões de uma população crescente, mas o seu atendimento primário é composto por muitos médicos heroicos.

A indústria farmacêutica é competitiva, oferecendo medicamentos seguros a preços acessíveis no mercado local. E há ainda, para os poucos privilegiados, a rede privada.

Nenhum sistema sofre um escrutínio regulador que dê as garantias das quais as pessoas necessitam. Essa falta de regulação e responsabilização significa que, quando as coisas vão mal, os pacientes e seus familiares não têm influência para conseguir reformas. Enquanto isso, a disponibilidade de atendimento privado permite que os bengaleses ricos ignorem os problemas do setor público.

Confesso que sou dos que optam por evitá-lo. Faz 26 anos, desde o acidente de Hafsa, que não vou ao Hospital e Faculdade de Medicina de Dacca. Se esse estabelecimento médico demitisse médicos que prestam tratamento abaixo do padrão, se respeitasse os padrões profissionais protegendo os pacientes em vez dos colegas e se o governo finalmente criasse um órgão fiscalizador, poderíamos começar a construir pontes de confiança no nosso sistema de saúde.

Então, talvez, os bengaleses talvez ficassem menos tentados a terceirizar seus serviços de saúde para médicos estrangeiros.

Tahmima Anam, escritora e antropóloga, é autora do romance “Uma Era de Ouro”.

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