Seis meses depois de se tornar o primeiro pontífice latino-americano, o papa Francisco convidou um padre octogenário do Peru para uma conversa particular em sua residência no Vaticano. A reunião em setembro de 2013 com Gustavo Gutiérrez logo se tornou pública —e foi rapidamente interpretada como uma mudança definitiva na Igreja Católica.
O padre Gutiérrez é um dos fundadores da Teologia da Libertação — movimento latino-americano que defende a ‘opção pelos pobres’ e pede mudança social—, que os conservadores já desprezaram por ser marxista e o Vaticano tratou com hostilidade por reduzir a importância do ‘espiritual’ na doutrina católica. Hoje o padre Gutiérrez é um teólogo em diálogo com a igreja, e seus textos são citados no jornal do Vaticano. Francisco trouxe outros padres latino-americanos de volta às boas graças e muitas vezes seu discurso sobre os pobres lembra a Teologia da Libertação.
Então, em 23 de maio, multidões lotaram San Salvador para a beatificação do arcebispo salvadorenho assassinado Óscar Romero, o que o situou a um passo da santificação.
Francisco colocou os pobres no centro de seu papado. Ao fazê-lo, está se envolvendo com um movimento teológico que já dividiu fortemente os católicos e foi rejeitado por seus antecessores, os papas João Paulo 2° e Bento 16. Mesmo Francisco, como jovem líder jesuíta na Argentina, teve hesitações.
Hoje o papa fala em criar “uma igreja pobre para os pobres” e tenta posicionar o catolicismo mais perto das massas —uma missão espiritual que surge enquanto ele também busca reanimar a igreja na América Latina.
Durante anos, os críticos da Teologia da Libertação no Vaticano e bispos conservadores latino-americanos ajudaram a conter o processo de canonização do arcebispo Romero, apesar de muitos católicos da região o considerarem uma figura moral importante: um crítico declarado da injustiça social e da repressão política, que foi assassinado durante uma missa em 1980.
Francisco resolveu o impasse.
A beatificação é o prelúdio do que provavelmente será um período definitivo do papado de Francisco, com viagens à América do Sul, a Cuba e aos EUA: a divulgação de uma encíclica sobre a degradação ambiental e os pobres, além de uma reunião em Roma para determinar se e como a igreja vai modificar sua abordagem em questões como a homossexualidade, a contracepção e o divórcio.
Ao avançar na campanha para a santificação do arcebispo Romero, Francisco envia um sinal de que a fidelidade de sua igreja é para com os pobres, que antes desacreditavam em alguns bispos mais alinhados a governos, segundo muitos analistas.
“Não é a Teologia da Libertação que está sendo reabilitada”, disse Michael E. Lee, professor-adjunto de teologia na Universidade Fordham, em Nova York. “É a igreja que está sendo reabilitada.”
A Teologia da Libertação inclui uma crítica das causas estruturais da pobreza e um pedido para que a igreja e os pobres se organizem para alcançar mudanças sociais.
O movimento surgiu depois de uma reunião de bispos latino-americanos em 1968 e se enraizava na crença de que as dificuldades dos pobres deveriam estar no centro da interpretação da Bíblia e da missão cristã. Mas, com a Guerra Fria em vigor, alguns críticos denunciaram a Teologia da Libertação como marxista e seguiu-se uma reação conservadora.
“Toda aquela retórica deixou o Vaticano muito nervoso”, disse Ivan Petrella, argentino estudioso dessa doutrina. “Se você viesse de trás da Cortina de Ferro, poderia cheirar um certo comunismo lá.”
João Paulo 2° reagiu indicando bispos conservadores na América Latina e apoiando grupos católicos conservadores como o Opus Dei e os Legionários de Cristo, adversários da Teologia da Libertação. Nos anos 1980, o cardeal Joseph Ratzinger —que mais tarde se tornaria o papa Bento 16, mas na época era o guardião da doutrina do Vaticano— emitiu duas declarações sobre a Teologia da Libertação. A primeira era crítica, mas a segunda mais branda, levando alguns analistas a se perguntarem se o Vaticano estava amolecendo.
Desde sua nomeação em 1973 como chefe dos jesuítas na Argentina, o papa Francisco —então conhecido como Jorge Mario Bergoglio e com 36 anos— foi visto como profundamente preocupado com os pobres. Mas figuras religiosas que o conheciam dizem que Francisco achava a Teologia da Libertação política demais. Quando foi nomeado arcebispo de Buenos Aires, ele se concentrou nos esquecidos pela recuperação econômica da Argentina.
“Com o fim da Guerra Fria, ele começou a ver que a teologia da libertação não era sinônimo de marxismo, como muitos conservadores haviam afirmado”, disse o americano Paul Vallely, autor de “Pope Francis: Untying the Knots” [Papa Francisco, desatando os nós]. Ele “começou a ver que os sistemas econômicos, e não apenas os indivíduos, podiam ser pecadores”.
Francisco havia feito fortes críticas ao capitalismo, reconhecendo que a globalização tirou muitas pessoas da pobreza, mas dizendo que ela também criou grandes disparidades e “condenou muitos à fome”. E advertiu: “Sem uma solução para os problemas dos pobres, não poderemos resolver os problemas do mundo”.
Na Argentina, alguns críticos não estão convencidos de que a franqueza de Francisco sobre os pobres representa a adoção da Teologia da Libertação.
“Ele nunca tomou as rédeas da Teologia da Libertação porque é radical”, disse Rubén Rufino Dri, que trabalhou no final dos anos 1960 e 70 com um grupo de padres que atuou nas favelas de Buenos Aires. Para ele, a decisão de Francisco de acelerar a beatificação do arcebispo Romero foi política. “É uma manobra populista de um grande político”, disse.
Outros deram uma opinião mais matizada. José María di Paola, 53, um padre próximo de Francisco, disse que a beatificação refletiu uma maior pressão de Francisco para reduzir o enfoque do Vaticano na Europa. “Faz parte de um processo de pôr fim à interpretação eurocêntrica do mundo pela igreja e ter um ponto de vista mais latino-americano”, disse ele.
Francisco muitas vezes pede que os fiéis atuem em benefício dos pobres, dizendo que se o fizerem serão transformados. Para os que conheceram Romero em El Salvador, essa transformação foi notável. Antes considerado um conservador, ele começou a mudar em meados dos anos 1970, quando era bispo de uma diocese rural onde soldados do governo tinham massacrado agricultores. Pouco depois de se tornar arcebispo de San Salvador, ficou horrorizado quando um amigo próximo, um padre jesuíta, foi assassinado, e logo começou a falar contra o terror e a repressão do governo.
“Ele começou a surpreender as pessoas”, disse Jon Sobrino, proeminente Teólogo da Libertação. “Eles o fizeram ser diferente, mais radical, como Jesus.”
Em 2007, o padre Sobrino teve seu choque pessoal com o Vaticano, quando o órgão doutrinário contestou alguns de seus escritos. Ele se recusou a modificá-los e atribuiu o congelamento da beatificação do arcebispo Romero em parte à hostilidade do Vaticano. “Foi necessário um novo papa para mudar a situação”, disse.
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