Quando a fábrica de roupas de seus filhos foi bombardeada em Aleppo, o empresário considerou duas opções desanimadoras: continuar na cidade e correr o risco de morrer no próximo ataque aéreo ou fugir, como centenas de milhares de sírios, para a Turquia.
Sua decisão, porém, foi diferente. Ele pegou todo seu dinheiro e foi para o leste, rumo a Raqqa, a capital de fato da força jihadista que mais cresce no mundo. Lá ele encontrou um grau de ordem e segurança inexistente em outras partes da Síria.
"O conflito na Síria vai continuar, então é preciso tocar a vida", disse o empresário Qadri, que não revelou seu sobrenome.
Bem antes de extremistas entrarem no Iraque e tomarem grande parte do território, o grupo então conhecido como Estado Islâmico no Iraque e no Levante, ou EIIL, tomou o controle da maior parte da província de Raqqa, com população de cerca de 1 milhão, e montou um quartel-general em sua capital. O grupo, que agora adota a denominação de Estado Islâmico, ou EI, passou a impor seus preceitos à região.
Embora alguns o respeitem por restaurar uma aparente normalidade, muitos nessa comunidade com tradição de tolerância estão alarmados com as execuções públicas e códigos sociais rígidos.
Na cidade, policiais de trânsito mantêm o fluxo nos cruzamentos, os crimes são raros e os coletores de impostos emitem recibos. No entanto, estátuas consideradas blasfemas foram destruídas, como os marcantes leões do parque Al Rasheed. Espaços públicos, como a praça Al Amasy, onde rapazes e moças flertavam à noite, foram murados. Pessoas acusadas de furto tiveram suas mãos amputadas publicamente.
Recentemente, um repórter do "New York Times" passou seis dias em Raqqa e entrevistou uma dezena de moradores. O repórter e os entrevistados não estão identificados aqui para protegê-los contra retaliações dos extremistas.
A prefeitura de Raqqa abriga a Comissão de Serviços Islâmicos. O Banco de Crédito de Raqqa agora é a autoridade fiscal, cujos funcionários cobram US$ 20 (cerca de R$ 45) a cada dois meses de donos de lojas por energia elétrica, água e segurança. Muitos disseram que recebem recibos oficiais com o símbolo do EI e que os tributos são menores do que os subornos que tinham de pagar ao governo Assad.
"Sinto que estou lidando com um Estado respeitado, não com assassinos", comentou um ourives de Raqqa.
Um funcionário de agência humanitária que vai sempre a Raqqa disse que as forças do EI estão repletas de jovens estrangeiros de passagem, mais interessados em violência do que em governança. Para manter as coisas funcionando, o EI paga ou ameaça trabalhadores qualificados para que continuem em seus cargos, sob a supervisão de pessoas leais ao regime.
"Eles não podem demitir toda a equipe e trazer outras pessoas para dirigir um hospital, então trocam o administrador por alguém que irá impor suas regras e regulamentos", disse esse funcionário.
As três igrejas cristãs em Raqqa foram fechadas. Após ocupar a maior delas, a Igreja dos Mártires Católicos da Armênia, o EI retirou suas cruzes, pendurou bandeiras pretas na fachada e transformou-a em um centro islâmico que exibe vídeos de batalhas e operações suicidas. Os poucos cristãos restantes pagam um imposto de alguns dólares por mês aplicado às minorias.
A polícia religiosa proibiu fumar cigarros e narguilés em público o que sufocou a vida social e levou ao fechamento de cafés. As mulheres também são obrigadas a cobrir cabelo e rosto em público.
Do ponto de vista pragmático, o EI conseguiu manter mercados abastecidos e padarias e postos de gasolina funcionando. No entanto, água potável e eletricidade podem ter cortes de até 20 horas por dia.
Na entrada sul da cidade, antigamente os visitantes eram saudados por um mosaico do presidente Bashar al-Assad e de Haroun al-Rasheed, o califa que governou o mundo islâmico a partir de Raqqa no século 9°. Agora há um enorme outdoor preto que homenageia o EI e os chamados mártires que morreram lutando por sua causa.
Este artigo é de autoria de um repórter do New York Times em Raqqa e Ben Hubbard.