Ele era uma figura conhecida pelos engraxates magrinhos que trabalhavam aqui à beira-mar. Segundo eles, o homem, que sempre usava calças esportivas pretas e boné de beisebol cobrindo a careca, aparecia no fim da tarde para levar um deles até o litoral rochoso ou a um monumento deserto em homenagem a um herói católico local. Os meninos dizem que ele lhes dava dinheiro em troca de atos sexuais. Chamavam-no de "o italiano", pois falava espanhol com sotaque.
Os meninos só descobriram a verdadeira identidade do homem quando ele sumiu do país e sua foto apareceu estampada em toda a mídia local. Tratava-se do arcebispo Jozef Wesolowski, o núncio apostólico (equivalente a embaixador) do Vaticano na República Dominicana.
"Eu me sentia muito mal", comentou Francis Aquino Aneury, que tinha apenas 14 anos quando o homem que conheceu enquanto engraxava sapatos passou a lhe oferecer cada vez mais dinheiro em troca de sexo. "Eu sabia que era uma coisa errada, mas precisava do dinheiro."
Esse foi o primeiro caso de um núncio do Vaticano que atua como um enviado pessoal do papa acusado de abuso sexual de menores. Isso causou um choque profundo no Vaticano e em dois países predominantemente católicos que começam a enfrentar a chaga de abuso sexual cometido por membros do clero: República Dominicana e Polônia, onde Wesolowski foi ordenado pelo prelado polonês que se tornaria o papa João Paulo 2°.
E também se tornou um teste da firmeza do papa Francisco, que chamou o abuso sexual de crianças de "crime horrendo" e prometeu fazer a Igreja Católica adotar uma postura de "tolerância zero". Para padres e bispos que violentam crianças, disse ele em maio, "não haverá privilégios".
Wesolowski foi afastado das funções religiosas pelo Vaticano em 27 de junho e agora tem situação de leigo. O Vaticano, que como Estado-cidade tem seu próprio sistema judicial, tem afirmado que pretende julgar Wesolowski pelas acusações criminais. Seria a primeira vez que o Vaticano faria um julgamento por abuso sexual. A igreja anunciou recentemente que Wesolowski perdeu sua imunidade diplomática e pode ser julgado em tribunais em outro país, embora não esteja claro se ele seria mesmo enviado para o exterior.
Todavia, o Vaticano causou indignação na República Dominicana, pois convocou subitamente Wesolowski no ano passado, antes que ele enfrentasse investigações e processos criminaiss. Agindo contra suas próprias diretrizes, a igreja não informou as autoridades locais sobre as provas contra ele, chamou-o secretamente para se apresentar em Roma e depois invocou a imunidade diplomática.
Wesolowski apelou contra a decisão do Vaticano de afastá-lo do sacerdócio, um processo que provavelmente será decidido em outubro, informou o Vaticano. As medidas legais no Vaticano serão tomadas depois disso, afirmou a igreja. Pela lei do Vaticano, acusações de abuso sexual podem resultar no máximo em 12 anos de prisão e em uma multa de cerca de US$ 200 mil.
"Do ponto de vista estrito da Justiça, ele deveria ser julgado no país onde cometeu os crimes, pois as condições para julgá-lo serão diferentes em qualquer outro lugar", opinou Antonio Medina Calcaño, reitor da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade Autônoma de Santo Domingo.
A maneira como o Vaticano está cuidando do caso mostra as mudanças que a igreja adota em relação a casos de abuso sexual, assim como suas falhas apontadas por muitos críticos. Quando se trata de afastar pedófilos do sacerdócio, o Vaticano está agindo com mais rigor e presteza do que antes. Porém, como o caso de Wesolowski sugere, a igreja continua relutando em denunciar às autoridades locais pessoas suspeitas e em deixar que elas enfrentem a Justiça secular.
Reprimir a exploração sexual de crianças é uma questão premente na República Dominicana e em muitos países, e a Igreja Católica está entre as diversas instituições religiosas que têm abraçado a causa.
Em março, o papa Francisco e outros líderes religiosos globais aderiram a uma campanha para combater todas as formas de escravidão humana, incluindo a prostituição infantil.
Wesolowski, 66, foi ordenado aos 23 anos em Cracóvia pelo arcebispo Karol Józef Wojtyla, que depois se tornaria o papa João Paulo 2°. Em 1999, ele foi nomeado núncio papal para a Bolívia e, em 2002, exerceu a mesma função no Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão e Uzbequistão.
Em 2008, Wesolowski foi enviado para a República Dominicana, onde foi deão cerimonial do corpo diplomático internacional. O cargo lhe deu direito a uma residência imponente e uma casa na praia.
À beira-mar, Wesolowski tentava disfarçar que pertencia à elite e dirigia um pequeno utilitário esportivo, dizem os meninos.
Wesolowski começou seus crimes enviando um jovem diácono dominicano em seu lugar para procurar crianças, segundo policiais da República Dominicana.
O diácono, Francisco Javier Occi Reyes, foi detido pela polícia em 4 de junho de 2013, acusado de assédio a menores, e foi para a prisão. Como ninguém quis pagar sua fiança para soltá-lo, Reyes enviou uma carta angustiada para Wesolowski.
"Nós ofendemos Deus" e a igreja, dizia a carta, abusando sexualmente de crianças "por migalhas de dinheiro."
O diácono enviou cópias da carta para o cardeal Nicolas de Jesus López Rodríguez, autoridade máxima da Igreja Católica na República Dominicana, e para o bispo dominicano Gregorio Nicanor Peña Rodríguez. O cardeal levou essa prova ao Vaticano, onde se encontrou com o papa Francisco. Em 21 de agosto do ano passado, Wesolowski foi convocado secretamente para ir a Roma.
A promotora pública de Santo Domingo, Yeni Berenice Reynoso Gómez, disse que seus investigadores identificaram quatro crianças cujas idades variavam de 12 a 17 anos, com as quais o núncio tivera contato sexual, e que provavelmente havia outras.
"Esse é o caso mais terrível que já vi", disse Reynoso. "Ele abusava de crianças que viviam em extrema pobreza." Ela disse que o caso será julgado na República Dominicana. "Essas crianças que foram abusadas, suas famílias e a sociedade dominicana têm o direito legítimo de ver Jozef Wesolowski julgado por um tribunal daqui", afirmou.
O caso repercutiu na Polônia e promotores públicos do país vêm tentando extraditar Wesolowski.
A Polônia indiciou outro padre polonês, o reverendo Wojciech Gil, que fugiu da República Dominicana no ano passado, em meio a alegações de que abusava de coroinhas em sua paróquia rural.
Promotores da República Dominicana dizem que padre Gil e Wesolowski costumavam levar meninos à casa de praia do núncio.
O caso abalou profundamente este país predominantemente católico. "Era comum as pessoas quererem que seus filhos frequentassem uma igreja católica", comentou o reverendo Rogelio Cruz, que é padre na cidade. "Agora elas dizem nenhum filho meu jamais pisará em uma igreja católica."
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