A caixa trancada ao lado da garagem da fazenda da família Butaye, perto desta cidade no oeste da Bélgica, está novamente lotada de bombas enferrujadas. Desde janeiro, nos 40 hectares de seu terreno, Stijn Butaye recolheu 46 projéteis de morteiros, munição da Primeira Guerra que encontrou pelas plantações de beterraba e de batata, às vezes com a ajuda de seu detector de metais.
O pai de Butaye, Luc, evita arar dois de seus campos, com medo de que as lâminas atinjam algo perigoso. Há pouco tempo, um dos vizinhos passou por cima de um velho projétil com seu trator e os estilhaços resultantes da explosão acabaram arrancando um pedaço de sua orelha.
"Não se sabe o que pode acontecer," disse Butaye, de 26 anos, que construiu um museu com as centenas de itens encontrados na propriedade incluindo sapatos, óculos, lâminas de barbear e uma máscara de gás perfeitamente preservada. "Essa terra é usada como pastagem para as vacas", acrescentou.
A Primeira Guerra começou há 100 anos. Os sobreviventes dos milhares de quilômetros de trincheiras lamacentas que cercaram esta região de importância estratégica estão mortos há muito tempo, mas a terra tornou-se a última testemunha, oferecendo lembranças constantes de um conflito sangrento e implacável que demoliu impérios, matou pelo menos 8,5 milhões soldados e sete milhões de civis e gerou consequências que permanecem até hoje.
Nas cercanias de Ypres, aliados e alemães lutaram por quase quatro anos nas batalhas mais famosas e sangrentas da guerra.
Especialistas dizem que, em uma campanha particularmente intensa, que durou três meses em 1917, conhecida como a Terceira Batalha de Ypres, só os britânicos dispararam mais de quatro milhões de projéteis. No final, cerca de 500.000 homens foram mortos ou feridos. Até 30 por cento das cápsulas disparadas nunca detonou, dizem os especialistas. Algumas deram xabu, e outras simplesmente se enterraram na lama antes de explodir.
Ao longo dos anos, muitos desses projéteis começaram a emergir, alguns aparecendo até em campos que já haviam sido arados muitas vezes. Normalmente, há dois ou três ferimentos por ano causados pela munição da Primeira Guerra em Ypres e nas aldeias vizinhas. Em março, dois trabalhadores foram mortos e um terceiro ficou gravemente ferido quando tentavam manipular um projétil em uma construção.
Potencialmente, todos locais de construções ou projetos de escavação podem desvendar não apenas munição, mas ossos também. Uma rodovia ficou inacabada; o trabalho terminou quando as máquinas começaram a descobrir túmulos e o governo britânico se opôs à continuação.
É impossível morar próximo a Ypres sem sentir o peso de viver sobre um antigo campo de batalha onde morreram jovens da Alemanha, da França, da Grã-Bretanha, da Bélgica, da Austrália, do Canadá e do Norte da África. Há cemitérios por toda parte.
E mesmo assim, mais corpos são sempre encontrados. Nos últimos anos, quando a cidade decidiu desenvolver uma zona industrial ao longo do canal do Yser, um grupo local de arqueólogos amadores autodenominado "Os Cavadores" acompanhou as escavadoras e descobriu as ossadas de 200 soldados; apenas um deles pôde ser identificado.
Aurel Sercu, integrante do grupo, guardou alguns dos itens menos importantes, incluindo um crucifixo quebrado, uma gaita e um par de meias de lã quase que perfeitamente preservado, encontrado em um dos túneis.
Ao encontrar uma navalha com um nome e número gravados em um dos lados, Sercu tentou localizar a família do soldado, mas a última parente deste tinha acabado de morrer. O marido dela mandou uma foto do soldado. "Esse homem morreu aqui, e deve saber que estamos olhando para sua foto. Há muita história nesse local. Não dá para não ficar obcecado," disse Sercu.
A guerra mal tinha terminado quando refugiados belgas começaram a retornar, na esperança de trabalhar nos ricos campos da região. Alguns se suicidaram ao ver o que havia acontecido às suas fazendas e vilas; outros começaram o trabalho de reconstrução, utilizando reparações de guerra alemãs, como árvores frutíferas e gado, que chegavam de trem.
Alguns especialistas dizem que é hora de fazer mais para livrar a terra dos efeitos da guerra, particularmente através da detecção de projéteis. Marc Van Meirvenne, especialista em solos da Universidade de Ghent, na Bélgica, disse que o radar de penetração no solo pode ser facilmente utilizado para encontrar as cápsulas.
No entanto, muitos agricultores não estão interessados, principalmente porque o processo pode alterar a composição do solo, trazendo à tona a argila azul que está abaixo da superfície.
A maioria dos agricultores tem conhecimento prático de munição da Primeira Guerra, identificando se a origem é alemã ou aliada, e qual a probabilidade de ela explodir. Uma unidade militar belga localizada nos arredores de Ypres recolhe cerca de 100 toneladas de munição por ano. Uma unidade francesa perto de Verdun recolhe a metade disso.
Certa amargura ainda persiste. O avô de Butaye estava ansioso para livrar a fazenda de quaisquer sinais de presença alemã. Tentou até mesmo explodir um bunker perto da casa."Sempre que ele tira foto da casa, deixa aquela parte de fora", disse Butaye.