Em uma sociedade transbordando de sentimento nacionalista, um pequeno projeto chamado Último Endereço parece quase subversivo. Coordenado por um grupo reduzido de ativistas, jornalistas, professores e historiadores, é uma tentativa de reconhecer publicamente as vítimas da repressão soviética, começando em 1917 e culminando (mas não terminando) com o Grande Terror de Joseph Stalin, uma onda de prisões e execuções de centenas de milhares de cidadãos ocorrida no final da década de 1930.
Suas ferramentas são humildes. Os organizadores aparafusam placas metálicas do tamanho de uma mão nas laterais de prédios conhecidos como os últimos endereços das vítimas.
Suas esperanças, porém, dado o entusiasmado clima patriótico, são mais ambiciosas. Antes de instalar a placa, todos no prédio precisam concordar que ela seja instalada, algo que levou a conversas entre vizinhos de todo o país sobre um período da história que em grande medida não foi processado pela sociedade russa.
“A meta não é cobrir o país inteiro com placas metálicas, mas fazer as pessoas conversarem”, disse Sergei Parkhomenko, jornalista e ativista cívico que teve a ideia do projeto depois de ver um semelhante na Alemanha.
Um projeto que inquieta
Nos primeiros anos após a queda da União Soviética, toda a brutalidade de sua história foi apresentada ao público. Porém, o interesse nessas revelações logo desapareceu, quando os russos acabaram abatidos pelo caos econômico, a desigualdade causticante e a perda de identidade e status que acompanharam a dissolução do império.
Hoje, o apetite em contemplar os momentos mais sombrios do império está em pé de igualdade com o de devorar as sobras de um ensopado de fígado. Os russos estão vivendo uma onda poderosa de nostalgia dos sucessos da União Soviética, e grupos como o Memorial, uma sociedade de direitos humanos que ajuda a coordenar o Último Endereço, trabalham em uma atmosfera de apatia e, às vezes, hostilidade pura e simples.
O Último Endereço é uma tentativa de reconhecer as vítimas como indivíduos, na esperança de que seus detalhes pessoais e o ato de serem lembrados ajudem a curar a sociedade. É um antídoto para a narrativa estatal de sacrifício coletivo honroso, segundo a qual muitos morreram, mas a Rússia terminou ganhando a II Guerra Mundial e é isso que importa.
“É a nossa pequena resposta ao patriotismo histérico”, disse Parkhomenko.
As placas são simples, gravadas com o nome da vítima, data de nascimento, prisão, execução e reabilitação; somente são considerados quem o estado absolveu. As famílias pagam quatro mil rublos (US$ 59) para a placa ser pendurada, e o Memorial examina os registros para confirmar a história da vítima.
Quase cem já foram instaladas desde o começo do projeto em dezembro de 2014, incluindo Moscou, São Petersburgo, Taganrog, no sul, e até mesmo na Sibéria. Existem quase 800 inscrições pendentes, cifra minúscula diante do número de mortos. Por exemplo, na região de São Petersburgo e Leningrado, o Memorial documentou mais de 48 mil mortes entre 1936 e 1938, anos das piores repressões.
No todo, na União Soviética inteira, quase 740 mil pessoas foram executadas em 16 meses em 1937 e 1938, disse Nikolai Ivanov, professor de História da Arte e de Design da Universidade Estadual de São Petersburgo, encarregado do Último Endereço nesta cidade.
Histórias nunca esquecidas
Em uma manhã recente ensolarada, Parkhomenko, Ivanov e vários outros ativistas corriam pela cidade em um furgão cinza velho carregando furadeira, escada e uma caixa de ferramentas cheia de placas.
Eles pararam na altura da Rua Bolshaya Pushkarskaya, 39, antes o lar de Lydia E. Bogdanova, dona de casa, e seu marido, Pavel D. Belenky, contador-chefe de um ministério que administrava as lanchonetes, restaurantes e lojas de comida da cidade. Eles foram presos em 2 de junho de 1937.
A família recebeu um pacote de roupas infantis de um parente na Polônia e o casal foi acusado de integrar uma “organização polonesa de espionagem e sabotagem”. O filho, então com seis anos de idade, lembra ter sido vestido com algumas das roupas na manhã em que a polícia levou a mãe embora. Ela foi executada em 15 de setembro, dez dias depois do pai. Nenhum deles era polonês.
Quando o filho do casal, Vladimir P. Belenky, solicitou na década de 1950 que fossem reabilitados, um vizinho lhe deu uma lista de artigos confiscados pela polícia: um casaco de inverno com uma linda gola de pele, sete ou oito vestidos de alta qualidade, roupas íntimas, um relógio de bolso masculino, sapatos femininos, uma penteadeira, um sofá.
(Às vezes, os bens parecem ter sido o motivo. Um informante, apelidado de “Televisão” por causa do fluxo constante de informações dada às autoridades, recebeu um apartamento, dinheiro e rações de alimentos extras durante a guerra. Segundo Ivanov, suas denúncias levaram à prisão de pelo menos 127 acadêmicos.)
Arseniy Belenky, 35 anos, bisneto do casal, que veio de Moscou para o evento, disse que o tema das repressões stalinistas não era exatamente popular, mas que é importante porque “é uma grande parte de nossa história”.
Túmulos
Para muitas famílias, as placas funcionam como túmulos porque os corpos dos entes queridos nunca foram encontrados. A família Malakhovsky realizou um pequeno almoço para homenagear um parente, Bronislav B. Malakhovsky, ilustrador que criou a famosa tirinha infantil “Umnaya Masha”, sobre as aventuras da menina Masha, depois que a placa foi instalada.
O evento parecia um velório. Pratos fumegantes de carne frita, salada de repolho e uma garrafa de vodca foram oferecidas aos convidados em uma mesa comprida de uma lanchonete perto do local. Malakhovsky foi preso e executado em 1937.
“Vamos beber à memória do inocente Bronislav Bronislavovich. Um grande talento!”, disse um homem de terno azul, usando o nome de família de Malakhovsky.
Algumas pessoas vieram observar.
Kseniya Kirpichnikova, 66 anos, bióloga, trouxe quatro cravos roxos para colocar perto de um dos locais, disse que seu pai despreza Stalin pelo que chama de desrespeito sistemático do ditador pelas vidas russas durante a II Guerra Mundial.
“Ele costumava dizer que muitos de nossos soldados morreram a troco de nada. Havia muitas ordens de ataque que não faziam sentido”, declarou a bióloga.
Kseniya solicitou uma placa para seu avô, um professor de inglês executado em 1938. Ele publicou um livro didático que as autoridades disseram conter citações de Lev Trostki, então exilado.
“É impossível para uma pessoal normal compreender. As placas vão ser penduradas. Talvez as crianças perguntem sobre elas”. Ainda segundo ela, “muita gente diz que nada disso ocorreu”.
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