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Síria vive rotina de pesadelo

 | Abd Doumany/Agence France-Presse/Getty Images
(Foto: Abd Doumany/Agence France-Presse/Getty Images)

Todos os dias, quando soa o chamado à oração ao amanhecer, mulheres e crianças partem em silêncio de Douma, subúrbio de Damasco, para as áreas agrícolas dos arredores, buscando se proteger dos bombardeios diários lançados pelo governo sírio.

A caminhada faz parte de uma rotina surreal descrita pela minúscula parcela dos moradores de Douma que permanece na cidade: as compras feitas em ruas parcialmente demolidas, a coleta de verduras e frutos silvestres e os enterros em massa. Não que a segurança esteja garantida na área rural: recentemente, segundo paramédicos, bombas mataram duas famílias nos campos —dez pessoas, incluindo sete crianças.

Essa é a vida da qual fugiram os milhares de sírios que chegaram à Europa nos últimos meses. Para trás, ficaram bairros cada vez mais vazios —desde os subúrbios de Damasco até os da cidade de Aleppo.

Os bombardeios acontecem há anos em áreas dominadas pelos insurgentes, como Douma, uma das primeiras a se rebelar contra o governo em 2011.

Ainda assim, a situação pode se agravar, como ficou claro nos últimos 30 dias.

As forças governamentais iniciaram uma saraivada de ataques ainda mais intensa que o normal, usando não apenas morteiros, com os quais os moradores de Douma já se acostumaram, mas também ataques aéreos.

Possivelmente quatro em cada cinco moradores já abandonaram a comunidade, que antes abrigava cerca de meio milhão de moradores.

Mais de 550 pessoas, em sua maioria civis, morreram no último mês em Douma e nos subúrbios próximos. Segundo a Cruz Vermelha, 123 eram crianças.

O paramédico Ahmed, que pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome, disse que a violência está abalando as pessoas que ainda permanecem no país.

Dos moradores de Douma que ainda restavam na cidade no início de agosto, disse, metade fugiu, enquanto os restantes fazem a caminhada diária para se esconder nos campos ou então “ficam encurralados em suas casas, rezando para não serem mortos”.

À medida que a atenção internacional foi se deslocando para a violência do Estado Islâmico (EI) e à ameaça representada pela facção fora da Síria, menos atenção está sendo dada ao embate original entre o ditador Bashar al-Assad e os grupos insurgentes que se rebelaram depois da repressão ao movimento de protestos em 2011.

No entanto, grupos que defendem a oposição síria, além de entidades internacionais como a Human Rights Watch, argumentam que os bombardeios pelo governo de áreas sob domínio insurgente, como Douma, têm um custo maior para a população civil, matando muito mais pessoas do que os ataques feitos pelo EI.

O governo sírio diz que está bombardeando terroristas. Douma se insurgiu desde o início dos protestos, e muitos de seus moradores se armaram. Hoje a cidade é reduto do grupo insurgente Exército do Islã. A Frente Nusra, braço da Al Qaeda na Síria, também é ativa ali. O EI não é ativo, pelo que se sabe.

Em termos de escala, o bombardeio de áreas rebeldes pelo governo chegou a outro nível. Os ataques já devastaram grandes setores do centro de Homs, no oeste da Síria, de Aleppo e dos subúrbios de Damasco. Em Aleppo, as armas mais usadas são bombas de fragmentação embaladas em barris. Elas são despejadas de helicópteros e não têm direcionamento preciso.

Nos últimos 30 dias, mais de 450 civis morreram em bombardeios governamentais em Ghouta Oriental, semicírculo de cidades em torno de Damasco controladas pela oposição. A informação é do Crescente Vermelho árabe sírio. Segundo a entidade, muitas das vítimas eram de Douma.

Mas não são apenas os bombardeios que distorcem a vida em Douma. Anos de bloqueios governamentais forçaram os moradores a recorrer a túneis e contrabandistas para obter mercadorias básicas. A ajuda humanitária não chega ali, e poucas pessoas conseguem entrar ou sair. Tanto os combatentes do governo quanto os da oposição recebem propinas e lucram com o contrabando.

Alguns insurgentes atuam como chefes de guerra. Por isso, para fugir é preciso tratar com contrabandistas de pessoas e correr novos riscos.

Os problemas começam no momento em que as pessoas deixam seu próprio quarteirão, a caminho de Damasco. As pessoas que conseguem chegar à capital —somando-se aos 7 milhões de sírios deslocados no interior do país— podem ser molestadas pelas forças de segurança, que desconfiam de pessoas originárias das áreas sob controle da oposição.

Esse fato leva muitos a partir para o Líbano, a Jordânia ou a Turquia, países que abrigam a maior parte dos 4 milhões de sírios cadastrados como refugiados no exterior. Porém, os países vizinhos estão ficando menos hospitaleiros, começando a dificultar a residência de estrangeiros e a reduzir os benefícios dados a eles.

Por isso os refugiados tentam ir mais longe, possivelmente à Europa. Sua outra opção é voltar a Douma e a uma guerra que já dizimou um quarto de milhão de sírios.

A vida ali só pode ser vislumbrada nos vídeos postados por insurgentes, ativistas e funcionários de serviços de resgate.

Em um vídeo recente, um voluntário, possivelmente adolescente, carregava o corpo de um garotinho sobre o ombro. Em outro, um jovem resgatava um corpo ensanguentado oculto sob pedras.

Os moradores de Douma batizaram o dia 16 de agosto de “domingo negro”. Nesse dia, segundo grupos de monitoramento, pelo menos 122 pessoas morreram em ataques aéreos. O médico Adnan Tobaji fez cirurgias em uma clínica improvisada, em alguns momentos trabalhando sobre o chão, sem anestésicos ou materiais esterilizados.

Os novos ataques devastaram o pouco movimento restante nas ruas de Douma. As autoridades locais impuseram um toque de recolher e chegaram a cancelar as orações de sexta-feira.

A queda livre da cidade levou Tobaji e várias centenas de seus colegas e outros moradores a assinar uma petição pedindo uma trégua humanitária completa, na esperança de que ela possa inspirar negociações e o fim da guerra.

O chamado é surpreendente pelo fato de vir da rebelde Douma. Ele não faz exigências relativas ao destino de Bashar al-Assad, algo que há muito tempo vem sendo um obstáculo. “O destino de Assad não é nada para nós quando comparado ao destino da Síria, de seu povo e de suas crianças”, disse Tobaji.

“Neste momento, enquanto conversamos, um sírio está sendo abatido. Precisamos encontrar uma solução para pôr fim à guerra de qualquer forma.”

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