Faith Hong leva meia hora para repassar um século de história e uma vida inteira de doutrina política.
É essa sua missão como voluntária no Museu Taipé 228, onde atua como guia para os visitantes da China continental, explicando os eventos que levaram à morte de pelo menos 28 mil pessoas em 1947.
Os responsáveis? As tropas enviadas pelo líder nacionalista Chiang Kai-shek, cujo rosto estampa as moedas de Taiwan e cujo partido, o Kuomintang, ainda governa a ilha.
“Fizeram coisas terríveis”, conta a ex-professora, a respeito dos soldados.
O Leste da Ásia tem certa dificuldade quando se trata de assumir a história. Na China, por exemplo, a repressão sangrenta ao movimento estudantil pró-democracia que ocupou a Praça da Paz Celestial, em 1989, ainda é tabu.
No Japão, sete décadas depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o primeiro-ministro é criticado pelos vizinhos, que reclamam de sua tentativa de minimizar as atrocidades cometidas pelo país.
Taiwan é diferente. Aqui o evento mais doloroso de sua história moderna é retratado em dois museus e um parque, dedicados ao chamado “Incidente 228”. Como muitos acontecimentos históricos na língua chinesa, o número se refere ao mês e dia em que aconteceu.
Durante 40 anos, o Kuomintang, que governou Taiwan após perder a guerra civil no continente, em 1949, para os comunistas de Mao Zedong, tentou reprimir qualquer alusão ao massacre, mas o processo de recuperação das lembranças tão difíceis é parte integral da evolução de Taiwan rumo à democracia.
Como mostra um quadro com um mapa das ruas, os eventos na verdade tiveram início no dia anterior, em 27 de fevereiro de 1947, quando os policiais que reforçavam o cumprimento da lei de monopólio do fumo pelo governo em Taipé se envolveram em uma confusão com uma vendedora de cigarros e um dos oficiais acabou atingindo a mulher na cabeça com uma coronhada. A atitude revoltou os taiwaneses, cansados da corrupção e dos desmandos do partido, explica Faith. Em questão de dias, a população assumiu a maior parte da administração da ilha.
O governador, Chen Yi, reuniu tropas de soldados nacionalistas no continente para acabar com o levante, que acabaram matando milhares de pessoas na ação que deu início a quatro décadas de “terror branco” — a campanha contra seus oponentes, principalmente os comunistas, que durou até a suspensão da lei marcial, em 1987.
A guia pergunta aos visitantes do continente se eles acham que a China tem condições de enfrentar os fantasmas de seu passado recente, como os milhões de mortos pela fome induzida pela industrialização forçada dos anos 50, o caos da Revolução Cultural e a repressão na Praça da Paz Celestial.
“No continente não dá para fazer isso ainda, quem sabe um dia. Pode acontecer o que for, tudo acaba progredindo”, disse uma visitante que se identificou apenas como Jessica para evitar possíveis retaliações da polícia.
Contribuiu Kiki Zhao