Hijras, indivíduos biologicamente masculinos que se identificam como mulheres, receberam status legal em alguns países do sul da Ásia. Labannya Hijra posa para um retrato| Foto: Allison Joyce/The New York Times

Labannya Hijra tornou-se uma heroína em Bangladesh em 30 de março. Depois de testemunhar o assassinato do blogueiro secular Oyasiqur Rhaman por radicais islâmicos numa rua de Dacca, ela tentou agarrar os assassinos em fuga. Sua intervenção levou à prisão dos dois homens, que mais tarde confessaram o crime.

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Porém, a parte mais marcante da história é que Labannya Hijra é uma “hijra”, termo usado no sul da Ásia para designar pessoas que são biologicamente homens, mas se identificam como mulheres. (As hijras assumem o nome de seu grupo como parte de seu próprio nome —é a razão de Labannya usar o sobrenome Hijra.)

O episódio com Labannya, que foi elogiada por sua coragem, levantou a questão de se os membros dessa comunidade transgênero podem ser tratados como cidadãos ativos de Bangladesh, com igualdade de direitos.

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O número de hijras no país é estimado em entre 10 mil e meio milhão (em uma população total de 157 milhões). Em 2013, o governo bengalês concedeu às hijras o status de “terceiro gênero”.

Após o ato heroico de Labannya, o governo anunciou planos para contratar hijras como policiais do trânsito, e a iniciativa foi muito bem recebida.

Recentemente, o Banco Central bengalês ordenou às instituições financeiras que gastem uma parte de suas verbas de responsabilidade social empresarial com a comunidade transgênero.

Parece que Labannya virou símbolo da mudança de nossas atitudes em relação ao que vemos como sendo a norma no âmbito da sexualidade e da identidade.

Em vários países do sul da Ásia, as hijras são vistas como membros de um terceiro gênero. Nos últimos dez anos, elas receberam status legal no Nepal, na Índia e no Paquistão, além de em Bangladesh. Em Bangladesh, isso significa que elas agora podem identificar seu gênero como “hijra” em documentos nacionais, como passaportes.

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A condição de “terceiro gênero” alude simultaneamente à exclusão social ainda enfrentada pelas hijras e à capacidade delas de transcender os tradicionais limites binários do gênero. Em termos etnográficos, as hijras exemplificam as adaptações culturais às vezes surpreendentes feitas por sociedades do sul da Ásia.

O conceito de um terceiro gênero remete pelo menos ao século 3°. Há textos hindus, budistas e jainistas que incluem discussões sobre as definições de sexualidade e gênero. Referências a um terceiro gênero aparecem esporadicamente ao longo do registro histórico, até o século 18, quando as leis coloniais criminalizaram todos os atos sexuais entre homens e fixaram os limites dos relacionamentos em formato de gênero rigidamente binário.

Se tudo isso soa muito progressista, vale lembrar que a condição de “terceiro gênero” deve ser vista sob a ótica de suas restrições, não apenas do que ela permite. A comunidade hijra é unida e hierarquizada, com suas regras próprias de parentesco e poder. Labannya só pôde fazer sua primeira declaração pública depois de receber a aprovação de sua mentora, Sapna Hijra —figura que exerce um papel entre o de mãe simbólica e líder espiritual na comunidade hijra da qual Labannya faz parte.

Seria quase impossível para uma pessoa como Labannya permanecer em seu vilarejo de origem ou sua família biológica. Embora a hijra possa “sair do armário” em Bangladesh, ela só pode assumir sua condição quando vive dentro de uma comunidade segregada que se define em grande medida pela pobreza, os maus-tratos e a prostituição.

Recentemente, o governo de Bangladesh se negou a revogar as leis que criminalizam a homossexualidade, herdadas de seu passado colonial. Isso significa que, embora se permita que as hijras integrem um terceiro gênero, é ilegal para elas, também, ter relações sexuais com outras pessoas de seu sexo.

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Em um universo progressista paralelo, as hijras poderiam ser vistas como autêntica expressão da fluidez da sexualidade e das identidades de gênero. Nesse mundo ideal, elas desafiariam não apenas nossas ideias binárias sobre sexualidade, mas também muitas outras premissas sobre nossa sociedade de outro modo tão aparentemente rígida.

Porém, a hijra bengalesa se nega a se enquadrar tranquilamente nesse contexto, porque ela se define não apenas por seu status como hijra, mas também por todos os contextos culturais, sociais, políticos e econômicos nos quais precisa viver.

Provavelmente nascida homem (embora algumas hijras possam ser biologicamente intersexuais), ela terá escolhido ao longo da vida identificar-se como mulher. É quase certo que terá sido abandonada por sua família ou tenha rompido relações com ela. É provável que seja prostituta ou pedinte. Graças a isso, também é provável que esteja envolvida com quadrilhas criminosas que controlam onde e como ela vive, com quem se relaciona sexualmente e quais são suas chances de algum dia ter filhos.

Em um sentido mais amplo, a aceitação da identidade da hijra não impede que ideias rígidas sobre masculinidade e feminilidade continuem a dominar em Bangladesh. Ainda se espera que homens e mulheres se enquadrem em categorias de gênero estreitamente definidas que determinam seu acesso às oportunidades de educação, saúde e outras. Ainda existe uma cultura profundamente arraigada e raramente contestada de homofobia, que atravessa todo o espectro social.

É importante manter tudo isso em mente quando pensamos em Labannya e outros membros da comunidade hijra. Podemos festejar seu novo status de cidadã plena de Bangladesh. Temos que torcer que a visibilidade que ela conquistou como defensora de Rhaman modifique seu status.

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No entanto, ainda é cedo para afirmar que os problemas das hijras chegaram ao fim.

Ao mesmo tempo em que damos o reconhecimento devido a um indivíduo excepcional, precisamos fazer mais pressão por transformações sociais e legais que concedam direitos maiores a toda a gama de identidades sexuais e de gênero —gay, hétero, transexual, cisgênero, “terceiro gênero” ou qualquer outra.