As imagens são de uma familiaridade grotesca, como se os horrores da última década estivessem sendo reprisados: homens mascarados recapturando as cidades iraquianas de Falluja e Ramadi, onde tantos soldados norte-americanos morreram tentando combatê-los; carros-bomba explodindo em meio à elegância do centro de Beirute; a guerra civil que transformou a Síria em um cemitério a céu aberto.
No entanto, apesar dos ecos do passado, a violência que tomou conta do Iraque, do Líbano e da Síria nas últimas semanas expôs um detalhe novo e desestabilizador: o surgimento de um Oriente Médio pós-EUA no qual ninguém detém nem o poder nem o desejo de conter os ódios sectários que flagelam a região.
Em meio a esse vácuo, islamistas fanáticos abundam no Iraque e na Síria, sob a bandeira da al-Qaeda, aproveitando que os conflitos desses países estimulam um radicalismo ainda mais profundo. E, por trás de (quase) tudo, está a rivalidade de duas grandes potências petrolíferas, Irã e Arábia Saudita, cujos governantes alegando representar o Islã xiíta e sunita, respectivamente cinicamente lançam mão de uma política sectária que faz qualquer tipo de concessão soar como heresia.
"Acho que estamos testemunhando um fator de mudança, talvez o pior em toda a nossa história", disse Elias Khoury, escritor libanês que viu de perto os efeitos dos quinze anos da guerra civil de seu país. "O Ocidente não está mais presente e estamos nas mãos de duas potências regionais, árabes e iranianos, cada um sendo fanático à sua moda. Não vejo como é possível se chegar a qualquer solução racional".
A nova onda de violência ameaça trazer de volta o pior da guerra civil iraquiana que os EUA desencadearam com a invasão e depois desperdiçaram bilhões de dólares e a vida de milhares de soldados para tentar conter.
Com a possível retirada das forças norte-americanas do Afeganistão ainda este ano, muitos temem que a insurgência volte a tomar conta do país, transformando em cinzas mais um esforço de reconstrução dos EUA.
O governo Obama defende sua atuação na região, mencionando os esforços para resolver a crise nuclear iraniana e a disputa palestina, mas reconhece seus limites. "Não é do nosso interesse ter tropas engajadas em todos os conflitos do Oriente Médio ou o envolvimento permanente nas guerras sem fim da região", afirmou Benjamin J. Rhodes, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, por e-mail.
Pela primeira vez desde a retirada das tropas norte-americanas, em 2011, militantes de um braço da al-Qaeda recapturaram parte do território iraquiano. Recentemente se apoderaram de partes das duas maiores cidades da província de Anbar, onde o governo, que os militantes condenam como marionete do Irã xiíta, luta para manter uma aparência de autoridade.
O Líbano foi atingido recentemente por dois carros bomba; na Síria, centenas de civis foram mortos por bombas jogadas indiscriminadamente sobre casas e feiras.
Em meio a todo esse caos está o apelo explícito, e cada vez mais forte, às lealdades atávicas de clãs e seitas. As filosofias impostas por países estrangeiros e as táticas autoritárias de policiamento dos déspotas árabes nunca permitiram que as comunidades definissem suas inimizades. Acontece que essas diferenças, praticamente inofensivas durante tempos de paz, foram se tornando cada vez mais tóxicas desde a Revolução Iraniana de 1979. Os eventos dos últimos anos aceleraram a tendência, com invasões estrangeiras e os levantes árabes enfraquecendo o Estado, tornando as fronteiras indistinguíveis e forçando os povos a se voltar a lealdades mais antigas em busca de segurança.
Os líderes árabes estão agindo de forma agressiva para preencher o vácuo deixado pelo Ocidente, alinhando-se em termos religiosos e de interesses comuns. A promessa do governo saudita de fornecer US$3 bilhões ao Exército Libanês é uma tentativa ousada de recuperar a influência em um país onde o Irã há muito tem um papel dominante por tabela, através do Hezbollah, movimento xiíta que financia e para o qual fornece armas.
A promessa acontece após o assassinato de Mohamad B. Chatah, figura política aliada aos sauditas, em uma explosão que todos creem ter sido engendrada pelo governo sírio ou seus aliados iranianos ou libaneses.
O Irã e a Arábia Saudita estão se empenhando em armar e recrutar mais homens para atuar na guerra civil síria. Sunitas do Egito, Líbia, Tunísia, Arábia Saudita e outros países se uniram aos rebeldes, muitos combatendo ao lado de afiliadas da al-Qaeda. Xiítas do Bahrein, Líbano, Iêmen e África estão na briga com milícias pró-governistas porque temem que a derrota do presidente Bashar al-Assad ponha em perigo a facção.
"Na Síria, cada um está brigando por interesses próprios, não só para proteger Bashar al-Assad e seu regime", afirmou um militante iraquiano xiíta que se disse chamar Abu Karrar. Ele conversou conosco de perto do templo xiíta de Sayida Zeinab, em Damasco, onde centenas de guerreiros xiítas de toda a região se reuniram para defender um símbolo de sua fé.
Alguns são treinados no Irã ou no Líbano antes de serem enviados para a Síria e muitos recebem salários pagos com as doações de comunidades fora do país, explicou ele.
Embora o governo saudita tenha travado uma briga feia com a al-Qaeda dentro de seu próprio território há uma década, o reino agora apoia rebeldes islamistas na Síria que frequentemente se alinham com grupos da organização, como o Nusra Front. Os árabes alegam não ter escolha: depois de defender, sem sucesso, uma intervenção norte-americana decisiva na Síria, acreditam que agora devem apoiar quem quer que seja que os ajude a derrotar Assad.
Por toda a atenção dada à Síria nos últimos três anos, o colapso do Iraque também oferece uma visão da dinâmica sectária sangrenta da região. Em março de 2012, Anthony Blinken, que hoje é assessor de Segurança Nacional do presidente Obama, fez um discurso repetindo a mesma visão otimista da Casa Branca sobre as perspectivas do Iraque depois da retirada das forças dos EUA. Ele disse: "O Iraque é um país menos violento, mais democrático e próspero." Porém o primeiro-ministro iraquiano, Nuri Kamal al-Maliki, já fazia uma campanha agressiva contra as figuras sunitas, o que enfureceu a minoria do país. Essa política sectária e a ausência das forças norte-americanas deu à al-Qaeda no Iraque uma insurgência sunita que tinha se tornado uma força inútil a oportunidade de recuperar sua reputação com os sunitas iraquianos e sírios. Resultado: a violência no Iraque cresceu cada vez mais no ano seguinte.
Alguns analistas reclamaram dizendo que os EUA poderiam ter forçado o primeiro-ministro iraquiano a ser mais inclusivo. "Maliki fez o que pôde para aprofundar as diferenças sectárias no último ano e meio", relatou Peter Harling, analista do International Crisis Group. "O pretexto é sempre o mesmo, não querem causar sobressaltos. E essa atitude vai resultar em quê?"
A violência no Iraque e na Síria já afeta o Líbano; o braço da al-Qaeda bombardeou a Embaixada Iraniana em Beirute, por exemplo, em um ataque visto como vingança pelo apoio do Irã a Assad. Outros atentados ocorreram, incluindo um ao reduto do Hezbollah, em dois de janeiro, um dia depois da prisão de um líder da al-Qaeda de origem árabe ser anunciada.
"Todos esses países estão sofrendo as consequências de um Estado que não é mais soberano", afirmou Paul Salem do Middle East Institute em Washington. "Na questão sectária, a coisa depende muito da rivalidade entre sauditas e iranianos. Será que essas duas potências vão se acomodar uma à outra ou continuar guerreando por procuração?"
Para quem está em combate, essa questão é levantada tarde demais. Amjad al-Ahmed, soldado xiíta de uma milícia pró-governista, disse por telefone da cidade síria de Homs: "Não existe essa de convivência entre nós e os sunitas porque eles estão matando meu povo aqui e no Líbano."