O dia 19 de julho marca o 39º aniversário da vitória dos sandinistas na Nicarágua, movimento revolucionário de esquerda que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza, apoiada pelos EUA. Agora o presidente Daniel Ortega, ex-guerrilheiro marxista de 72 anos, se parece cada vez mais com o tirano que ele e seus companheiros derrubaram. A cidade de Masaya, que já foi um celeiro sandinista, agora é vista como um bastião da oposição.
"Depois de voltar ao poder em 2007, [Ortega] burlou a constituição para se reeleger em 2011. Ele então completou seu golpe palaciano assumindo o controle total de todos os quatro ramos do governo, instituições estatais, militares e policiais", explicou o jornalista Tim Rogers, veterano da Nicarágua. "Ele baniu partidos da oposição, reescreveu a constituição e transformou a Nicarágua em seu feudo pessoal, que ele governa de dentro dos muros de seu complexo, uma fortaleza de concreto que ele raramente deixa".
Ortega manteve o poder cultivando o apoio entre o clero e a comunidade empresarial do país. Até recentemente, ele também contava com a generosidade da Venezuela. "Mas a Venezuela cortou sua ajuda e os problemas fiscais do governo foram exacerbados pela corrupção", observou a revista The Economist.
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Agora, a Nicarágua enfrenta seu próprio momento venezuelano, com um regime que se apega violentamente ao poder diante de uma persistente agitação popular. "As demandas do povo são claras: justiça para aqueles que foram mortos, um retorno à democracia e a renúncia da família governante", escreveu Dánae Vílchez, jornalista de Manágua, para a seção de opinião do Washington Post no mês passado. "Ortega está pedindo uma 'solução constitucional pacífica' para a crise, mas ele só quer permanecer no poder. Suas violações de direitos humanos fizeram dele um líder ilegítimo bem distante da Constituição. Ele precisa renunciar".
Ortega, no entanto, não está mostrando sinais de desistir. Ele alega que a oposição é formada por "delinquentes de direita", embora muitos que agora se opõem ao seu governo incluam ex-sandinistas. Sua esposa, a vice-presidente Rosario Murillo, rotulou os oponentes de Ortega como "conspiradores golpistas, poucos em número, malignos, sinistros, diabólicos, satânicos e terroristas".
O casal, alertam os críticos, segue as mesmas táticas dos líderes em Caracas. "Como Hugo Chávez, Ortega procura permanecer no poder indefinidamente, mas ultimamente planejava entregar o comando à esposa", escreveu Otto Reich, ex-diplomata norte-americano na América Latina. "Na busca desse objetivo, ele trabalhou a partir do manual de Chávez: manipulando as leis eleitorais e eliminando freios e contrapesos; controlando a polícia nacional; cooptando a Suprema Corte e a legislatura; restringindo a liberdade de expressão e reprimindo a mídia independente; perseguindo a oposição e outros críticos".
Críticas no exterior
Mas enquanto a dissidência pode ser reprimida em casa, o governo nicaraguense enfrenta críticas crescentes no exterior. Na quarta-feira, a Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou os abusos cometidos pela polícia e pelas forças pró-governo da Nicarágua, conclamando Ortega a aderir a um processo de diálogo e a eventuais eleições.
"Cada vítima adicional dessa campanha de violência e intimidação compromete ainda mais a legitimidade de Ortega", disse a porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Heather Nauert, nesta semana. "Eleições livres, justas e transparentes são o melhor caminho para a democracia e o respeito pelos direitos humanos na Nicarágua".
"A terrível perda de vidas deve parar - agora", disse um porta-voz do escritório de direitos humanos da ONU. "A violência é ainda mais horrível, já que elementos armados leais ao governo estão operando com o apoio ativo ou tácito da polícia e de outras autoridades estatais". O secretário-geral da ONU, António Guterres, discursando da vizinha Costa Rica na segunda-feira, condenou o "uso da força por parte de entidades ligadas ao Estado".
"Nosso Hemisfério está observando e levantando sua voz em apoio ao povo nicaraguense", escreveu o vice-presidente Mike Pence no Twitter. "A violência deve terminar agora".
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Até agora, parece improvável que Ortega atenda a tais avisos. Mas a brutalização do próprio povo por seu regime corre o risco de repetir um ciclo sangrento que muitos esperavam que a Nicarágua tivesse deixado no passado. "A Venezuela mostra que um regime que é indiferente ao custo humano pode sobreviver a protestos nacionais e pressão internacional", observou a The Economist. "Os nicaraguenses só podem esperar que seu país realmente se mostre diferente".
Tortura e aumento da repressão
Forças leais a Ortega aumentaram a repressão à oposição do país na quarta-feira (18), parecendo assumir o controle total de um reduto rebelde na cidade de Masaya. Um dia antes, policiais e paramilitares fortemente armados invadiram o bairro de Monimbó, matando pelo menos três pessoas e levando outros 40 sob custódia, segundo um grupo de direitos humanos.
As barricadas, feitas com concreto retirado do pavimento, foram destruídas ou abandonadas. Policiais e paramilitares mascarados controlam o bairro em patrulhas, montados em camionetes, todos com armas de cano longo.
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Uma vendedora ambulante que não quis se identificar contou que foi torturada pelas forças de Ortega. "Enquanto me cortavam, perguntavam onde estava o meu filho e o o nome dos demais meninos", contou a mulher de 38, enquanto mostrava as pernas que foram cortadas com bisturi. "Cortavam e diziam: 'Fala ou te matamos'."
A sessão de tortura, relatou, ocorreu por volta das 10h de terça-feira e durou dez minutos. "Eles me jogaram no chão, me levantaram e me jogaram de novo. Eram três: dois de camisa azul [paramilitares] e um vestido de preto [policial]".
Mas a ambulante já não sabia onde estava o seu filho, estudante do ensino médio. Quatro horas antes, ele havia fugido a pé, levando apenas uma jaqueta. "Tenho medo. Fui dormir fora de casa, temo que voltem a me procurar."
O filho dela pode estar na lista dos pelo menos 60 moradores de Masaya desaparecidos desde o confronto de terça, segundo a ANPDH.
Os protestos contra Ortega completaram três meses nesta quarta (18). No início, o motivo era a reforma da Previdência, que cortava benefícios e ampliava contribuições. O governo recuou do projeto, mas, diante da repressão violenta, as marchas passaram a exigir a renúncia do líder sandinista, no poder desde 2007. Cerca de 360 pessoas morreram durante os protestos, segundo a ANPDH, na grande maioria civis.
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