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Em 16 de setembro de 2020, a equipe da Missão Internacional Independente para a Determinação de Fatos na República Bolivariana da Venezuela apresentou os resultados de uma investigação encomendada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em setembro de 2019, sobre a situação dos direitos humanos no país, constatando a ocorrência de gravíssimas violações dos direitos fundamentais do povo venezuelano.
O informe, de mais de 400 páginas, apresentou numerosas evidências de desaparecimentos forçados (sequestros), execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, torturas e outros tratos cruéis, inumanos ou degradantes, numa clara confirmação das denúncias realizadas por anos pelas próprias vítimas, pelas organizações da sociedade civil e pelas forças democráticas da Venezuela.
Nos últimos anos, os relatórios de atualização sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela, apresentados pela Oficina do Alto Comissionado para os Direitos Humanos (ACNDUH), hoje liderada pela ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, já vinham confirmando a responsabilidade da ditadura de Nicolás Maduro pela destruição das bases materiais que sustentavam a prosperidade do país e a capacidade dos venezuelanos de terem uma vida digna através do livre exercício dos seus direitos econômicos. Nesse quesito, no ano passado, a própria Bachelet refutou o argumento de que as sanções norte-americanas foram as responsáveis pelo debacle econômico e pela emergência humanitária complexa que está dizimando os venezuelanos.
Em matéria de direitos civis e políticos, os pronunciamentos do ACNUDH não foram poucos. Ao longo das sessões ordinárias e extraordinárias do Conselho de Direitos Humanos, sucessivos relatórios de atualização apresentados pelo órgão mostraram como os governos de Chávez e Maduro trabalharam de forma progressiva no fechamento do espaço democrático do país, instrumentalizando um poder judiciário obediente para violentar os direitos civis e políticos dos venezuelanos e desconhecer a vontade popular.
O informe de julho passado documentou como o regime de Maduro renovou o poder judiciário de forma arbitrária e completamente ilegal para garantir seu controle. Através da instrumentalização do judiciário, desde 2016 foram emitidas 127 sentenças invalidando as decisões do parlamento venezuelano, nas quais foram constatadas pelo ACNUDH inconsistências e considerações políticas emitidas com o intuito de prejudicar a dissidência política ao regime. O Tribunal Supremo de Justiça levantou a imunidade parlamentar de 29 deputados da Assembleia Nacional, usurpou atribuições exclusivas do parlamento para renovar as autoridades dos poderes eleitoral e cidadão, arrebatou de suas legítimas autoridades a direção dos partidos políticos opositores à ditadura chavista e interveio sobre as instâncias inferiores do poder judiciário para perseguir e levar à prisão centenas de lideranças politicas e cidadãos comuns.
Contudo, a apresentação do relatório da missão independente feita na quarta-feira, 16, deu um passo adiante. O documento não só apresenta cifras sobre o número de vítimas e casos específicos de atrocidades cometidas contra cidadãos inocentes, como também cumpriu com o mandato de verificar a responsabilidade individual de funcionários do Estado venezuelano pelos delitos cometidos. Nesse esforço, a missão encontrou evidências da implicação direta de Nicolás Maduro e outros altos funcionários do regime no cometimento desses delitos. De acordo com o texto, a missão constatou que Maduro e outros altos escalões da ditadura, como o ministro da defesa, Vladimir Padrino Lopez, estavam cientes das ações que foram realizadas, deram ordens aos funcionários dos corpos de segurança para cometer esses atos, coordenaram planos e forneceram recursos para que os delitos fossem executados.
Dessa forma, o trabalho do Alto Comissionado da ONU para os Direitos Humanos e, especialmente, o relatório da missão de apresentação de fatos na Republica Bolivariana da Venezuela deixou em total evidência o caráter criminal da ditadura chavista, abrindo a porta para que Maduro e outros membros da cúpula do regime possam prestar contas perante à justiça internacional pelos delitos de lesa-humanidade cometidos e garantir o acesso à justiça e reparação das vítimas.
Entretanto, a utilização da evidência apresentada não pode ficar limitada ao terreno jurídico. A exposição das atrocidades cometidas por Maduro nos últimos anos exige o pronunciamento daqueles que ainda continuam guardando silêncio e ações mais contundentes dos atores que apoiam o resgate da democracia no país. Os autênticos democratas do mundo devem se posicionar de forma mais incisiva contra a tragédia provocada por Maduro e desmascarar de uma vez por todas os atores políticos que ainda respaldam esse regime criminal. Já passou da hora de assumir uma posição altiva pela defesa dos direitos humanos e pela democracia na Venezuela. É momento de atuar de forma coerente pela dignidade das vítimas ou pagar os custos políticos pela cumplicidade irresponsável com a ditadura.
*William Clavijo é cientista político venezuelano, doutor em políticas publicas pela UFRJ e fundador da Rede de Venezuelanos no Brasil (REDEVEN)