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Governo catalão planeja declarar sua separação de maneira unilateral nos próximos dias, mas Madri não irá reconhecê-la. | PAU BARRENAAFP
Governo catalão planeja declarar sua separação de maneira unilateral nos próximos dias, mas Madri não irá reconhecê-la.| Foto: PAU BARRENAAFP

“Salve a ti, pavilhão de Castela / pincelada de sangue e de sol / quem não dobre a ti o joelho / não merece ser chamado de espanhol."

Aos 77 anos, o historiador e filólogo Joan Francesc Mira ainda se lembra desses versos, que memorizou na escola durante a ditadura de Francisco Franco (1936-1975).

O poema é o exemplo que dá à Folha ao explicar por que é tão difícil para o Estado espanhol entender o separatismo catalão, que desafia sua unidade territorial.

"Há um processo histórico. Mas ninguém fora da Catalunha quer reconhecer isso. Há uma venda sobre os olhos", afirma Mira, nascido em Valência - região vizinha à catalã, e de mesma língua.

O governo catalão planeja declarar sua separação de maneira unilateral nos próximos dias, mas Madri não irá reconhecê-la, e tampouco a aceitará a União Europeia.

Mas os processos de ruptura são assim mesmo, diz Mira. "Historicamente, até que consigam a independência, é algo considerado anormal. Depois, passa a ser normal, como foi a onda de independências nos anos 1990 no Báltico e no Cáucaso."

Há um embate entre narrativas históricas distintas, quando nós falamos do separatismo catalão?

Como acontece em qualquer parte do mundo, as narrativas têm perspectivas próprias. A questão dos direitos políticos é muito relativa. A história recente da Europa não foi feita de unificações, mas de separações. A Europa estava dominada há um século por espaços imperiais -prussianos, russos, turcos, austríacos- que já não existem mais.

A separação é, portanto, um processo natural?

Historicamente, até que consigam a independência, é algo considerado anormal. Depois, isso passa a ser normal, como foi a onda de independências nos anos 1990 no Báltico e no Cáucaso.

É um processo antigo?

É muito moderno. O nacionalismo começa no século 19. O catalão é mais um. É um país com um processo de autoafirmação desde a metade do século 19, mas que não chegou ao final. Tchecos, eslovacos, lituanos, finlandeses, irlandeses conseguiram isso. Mas a Catalunha, não.

Não é invenção desta classe política atual, então?

Não foi inventado há dias. Há um processo histórico. Mas ninguém fora da Catalunha quer reconhecer isso. Há uma venda sobre os olhos.

Por que esses países conseguiram, e não os catalães?

A Catalunha passou por um processo centralista castelhano muito duro -como o do Estado francês, que anulou diversidades culturais.

Na Espanha castelhana do século 18, em uma dinastia Bourbon, o rei Felipe 5º suprimiu todas as leis e instituições de Valência e da Catalunha, em um tipo de genocídio político absoluto, impondo o sistema castelhano.

Mas por que a Catalunha tem um processo separatista forte, e Valência, não?

A Catalunha teve um processo industrial moderno, no século 19, com a indústria têxtil. Com isso, surgiu uma classe empreendedora mais moderna. Isso criou distâncias e enfrentamentos. Instituições locais foram criadas.

Essa situação foi anulada pelas ditaduras de Primo de Rivera (1923-1930) e de Francisco Franco (1936-1975), proibindo inclusive a língua catalã. Fuzilaram o último presidente catalão, Lluís Companys, mas as pessoas se esquecem desse fato.

Como o processo foi reanimado, nas últimas décadas?

Quando a democracia foi recuperada, em 1975, essas forças voltaram à superfície. É um fenômeno de profundidade histórica, portanto, e também cultural e social.

Houve também uma forte migração de espanhóis à Catalunha nas últimas décadas. Como essas pessoas veem o processo de separação?

Há independentistas que são filhos de migrantes de outras regiões, e essa é a coisa mais bonita. Não é um nacionalismo étnico, é social.

Por que essa visão separatista contrasta tanto com a visão do Estado espanhol?

É impossível enxergar isso do ponto de vista centralista. Imagine que, quando eu tinha dez anos, tive de memorizar estes versos na escola: "Salve a ti, pavilhão de Castela / pincelada de sangue e de sol / quem não dobre a ti o joelho / não merece ser chamado de espanhol".

Há algum conflito entre historiadores. Alguns dizem que a Catalunha era independente antes de o rei espanhol Felipe 5º anular suas leis em 1714, data-chave do nacionalismo catalão. Outros estudiosos afirmam que o que existia antes de 1714 era apenas uma autonomia relativa...

Veja, os documentos no século 15 estavam todos escritos em catalão. Mas falar em autonomia entre os séculos 15 e 18 é um anacronismo. Não tem sentido, porque essa categoria não existia.

Havia uma Constituição diferente, fronteiras próprias. Era um Estado, mas diferentes Estados tinham um mesmo rei. Como Portugal, que teve o mesmo rei que a Espanha por algumas décadas.

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