Nas profundezas do território talibã, no alto das montanhas que delimitam a fronteira entre Afeganistão e Paquistão, um comandante militante de alto escalão empunhando um fuzil Kalashnikov se gabava da vitória do grupo contra o Estado Islâmico na região. Ele declarou que "quando o Talibã chegar, a paz também chegará".
Mas um ataque mortal do Talibã na base militar dos EUA em Bagram poucas horas antes minou sua mensagem. Mesmo quando o grupo enviou negociadores para estabelecer um acordo de paz com os Estados Unidos, comandantes e combatentes descreviam uma militância comprometida com o uso da violência para atingir seu objetivo de recuperar o poder político depois de mais de 18 anos em guerra com as forças americanas e afegãs.
A extraordinária coletiva de imprensa realizada no início deste mês pelo diretor interino das operações militares do Talibã, Moulawi Muhammad Ali Jan Ahmed, para um pequeno grupo de jornalistas ocidentais sinalizou a busca de legitimidade dos militantes no cenário global, depois de anos sendo vistos como combatentes inimigos. O Talibã controla ou disputa aproximadamente metade do Afeganistão, e as negociações de paz podem formalizar o poder do grupo.
"Nos últimos 18 anos, temos lutado contra o governo afegão e os americanos, e nossa luta continuará", disse Ahmed, vestido com um turbante preto e jaqueta com estampa de camuflagem ao lado de apoiadores. "Eles ocuparam nossa terra. Nossos ataques continuarão e também aumentarão. Qualquer poder que tivermos usaremos contra eles, se Deus quiser."
O ataque a Bagram em 11 de dezembro, que matou duas pessoas e deixou mais de 70 feridos, desestabilizou a mais recente rodada de negociações de paz em Doha, no Catar. Ainda assim, os comandantes do Talibã consideram esse ataque um exemplo da crescente pressão que o grupo planeja para as forças dos governos dos EUA e do Afeganistão nos próximos meses.
"Em comparação com dez anos atrás, sim, acredito que o mundo nos vê como um movimento mais legítimo, e tudo isso é devido à nossa violência", disse Saied, que é um dos 14 comandantes militares do Talibã responsáveis pela província de Nangahar e que, como muitos afegãos, tem um único nome.
O mulá Nik Muhammad Rahbar, 28 anos, comandante do Talibã responsável pela província de Cabul, destacou os recursos liberados pela conclusão da luta contra o Estado Islâmico em Nangahar, dizendo que o Talibã seria capaz de voltar a realizar mais ataques expressivos em Cabul e em outros lugares.
"Graças a Deus vocês viram o que alcançamos contra Bagram hoje", disse ele. "Lançamos ataques em Cabul porque existem muitos estrangeiros lá, muitos alvos para nós".
Apesar das alegações do Talibã de que o grupo tem como alvo apenas forças estrangeiras e instalações do governo afegão, os ataques do grupo mataram 922 civis e deixaram 2.901 feridos apenas este ano, de acordo com o mais recente relatório da ONU. Os comandantes do Talibã em Nangahar disseram que o grupo estava fazendo todo o possível para reduzir as baixas de civis, incluindo a criação de uma comissão para investigar ataques que matam civis e a prisão dos responsáveis.
Antes de adentrar nas montanhas para o encontro com os líderes, os combatentes do Talibã escoltaram os jornalistas pela vila de Zawa, no distrito de Sherzad. Em um comboio de Toyota Corollas surrados com o rádio tocando leituras do Corão a todo volume e caminhonetes com bandeiras do Talibã, os homens mostravam casas que, segundo eles, foram destruídas por ataques aéreos, uma escola que eles disseram ter sido incendiada em um ataque noturno e uma clínica que eles disseram ter invadido e removido de lá os suprimentos médicos.
Os Estados Unidos dedicaram centenas de militares para lutar contra o Estado Islâmico, ao lado de milhares de forças de segurança do governo afegão, que realizaram operações de remoção "de vale em vale, de casa em casa", disse uma autoridade dos EUA. E uma enorme campanha aérea americana matou centenas de comandantes islâmicos de médio e alto escalão em Nangahar.
Um grupo de cerca de uma dúzia de agricultores, que cuidava de ovelhas perto dos restos de uma casa atingida por um ataque aéreo, revelou a intensidade do combate aéreo contra o Talibã e o Estado Islâmico. Todos eles disseram que haviam perdido um membro da família devido a ataques aéreos ou por drones.
Um pastor de 35 anos chamado Rahimullah disse que perdeu seu tio em um ataque de drone e não conseguiu recuperar o corpo dele que estava em um morro nos arredores enquanto o drone continuava sobrevoando o local. Um homem idoso, Seghagan, contou como seu filho foi morto em um jardim por um ataque aéreo há dois anos. Ameen, 28 anos, disse que perdeu três filhos pequenos quando um ataque aéreo atingiu sua casa há sete meses.
Mas não foram as ações militares dos americanos ou dos afegãos que fortaleceram o Estado Islâmico nessa região, disseram os comandantes do Talibã. O Estado Islâmico representou uma ameaça existencial ao Talibã ao recrutar combatentes que estavam insatisfeitos com a decisão de seus líderes de se envolver em negociações de paz. Assim, os comandantes convocaram dissidentes de forças talibãs do sul do Afeganistão para ajudar no ataque.
"Queremos que o mundo nos conheça como mais do que apenas assassinos", disse Saied, comandante do Talibã. "Também estamos combatendo terroristas".
Autoridades dos governos americano e afegão admitem que as contribuições do Talibã para a luta contra o Estado Islâmico foram significativas.
Os talibãs "foram catastroficamente bem sucedidos"na luta contra o Estado Islâmico, disse uma autoridade dos EUA, que falou sob condição de anonimato para discutir o assunto com a imprensa.
Apesar das operações terrestres e aéreas dos EUA e do Afeganistão, "o Estado Islâmico conseguiu recuar mais profundamente a essas montanhas e esperar até irmos embora para depois reassumir esse território", disse a autoridade. "Ao contrário de nós, o Talibã não precisou retornar às bases e não precisou retornar às posições oficiais em Jalalabad ou em outros lugares".
O fato de o Talibã ter convidado jornalistas para seu território em Nangahar para se vangloriar da vitória do grupo sobre o Estado Islâmico reflete "a percepção do Talibã de que eles têm uma imagem internacional péssima e, mais precisamente, de que isso é um problema", disse Ashley Jackson, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Ultramarino que fez um extenso trabalho de campo estudando o Talibã.
"Acho que isso faz parte da preparação deles para o que eles veem como negociações de paz que estão prestes a dar a eles um enorme controle sobre o Afeganistão", acrescentou.
A expectativa é de que um acordo de paz entre os negociadores americanos e talibãs leve a negociações dentro do Afeganistão, com o objetivo de formar um governo unificado no qual algumas autoridades do Talibã assumirão posições formais de poder. Mas qualquer acordo desse tipo pode levar anos - as conversações entre EUA e Talibã fracassaram repetidamente, e o governo afegão permanece profundamente dividido na questão da paz com o Talibã.
A possibilidade de paz também levanta a questão sobre o que acontecerá com os estimados 80 mil combatentes nas fileiras do Talibã.
Os comandantes de médio e alto escalão do Talibã reunidos em Nangahar disseram que, se um acordo de paz for bem-sucedido, eles esperam "continuar a servir" seu país.
"Gostaria de servir meu país da maneira que sirvo agora", disse Ahmed, que supervisiona operações em 20 províncias. "Ou talvez até mais."
Mas as dezenas de membros do Talibã que participavam às margens da apresentação para os jornalistas disseram que esperam abandonar as armas e voltar à vida civil. Autoridades americanas alertaram que o Afeganistão não está preparado para a reintegração de ex-combatentes à sociedade porque o governo não tem a capacidade de monitorá-los e de garantir sua segurança.
Ali Kheil Umari, 35 anos, que era professor de matemática em uma escola financiada pela Unicef antes de perder um membro da família em um ataque aéreo e se juntar ao Talibã, disse que voltaria a ser professor. Mas para a maioria dos outros homens, ser combatente do Talibã foi a primeira e única profissão que eles tiveram na vida adulta.
Abdul Rahman, 20 anos, que se uniu ao Talibã aos 14, escondia o seu braço debaixo do seu casaco. Ele perdeu uma mão quando era combatente e tentou desarmar um explosivo. Em caso de paz, ele disse, ficaria feliz em voltar a trabalhar como agricultor em Nangahar.
Mas ele reconheceu que a transição seria difícil. Ele não tinha experiência com trabalho em fazenda. Ele também deixou transparecer a relutância em deixar para trás o que vê como um chamado religioso.
"Com a agricultura, você está se alimentando para esta vida", disse Rahman. "Com a jihad, você está se alimentando para a vida após a morte."
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