A convulsão social que tomou conta da Nicarágua em meados de abril fez muitos analistas de geopolítica imaginar que aquilo seria o início do fim da era Daniel Ortega. Quase oito meses depois, a realidade não poderia ser mais diferente: ele e sua esposa Rosario Murillo, que além de primeira-dama é vice-presidente, estão usando todo o seu poder político para se manter à frente do país. E fazem isso às custas da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, da democracia e às custas de seu próprio povo.
“O fato de que Ortega ainda controla as rédeas do Estado, apesar de uma oposição maciça contra ele, mostra a falta de democracia na Nicarágua”, afirma Benjamin Waddell, professor de Sociologia do Centro de Investigação e Docência Econômica, da Nicarágua.
O caminho de Ortega rumo ao autoritarismo ficou mais claro depois das manifestações de abril. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem detectado um incremento nos atos de violência e repressão para dissuadir as manifestações na Nicarágua. A Polícia Nacional está qualificando as manifestações como ilegais, apenas pelo fato de nelas terem havido atos pontuais de violência.
Uma nota publicada pela Polícia Nacional em outubro, às vésperas da data que marcava seis meses de manifestações contra o regime, determinava que qualquer mobilização no país poderia se realizar desde que os organizadores tenham solicitado a autorização correspondente junto às autoridades policiais e que esta tenha sido outorgada. Segundo a polícia, “não será permitida nenhuma ação que violente o direito das famílias nicaraguenses à paz e à vida e lembra que qualquer atividade provocadora, instigadora e violenta será penalizada de acordo com a constituição política e as leis da Nicarágua.”
No dia 14, o Mecanismo Especial de Acompanhamento da Nicarágua (Meseni, na sigla em espanhol) tomou conhecimento da repressão da marcha Unidos pela Liberdade. O grupo de manifestantes foi rodeado por tropas antimotins e integrantes da Polícia Nacional. Segundo esta, 38 pessoas foram presas. Mas de acordo com o Meseni, o número foi maior: pelo menos 50, entre elas jornalistas.
A situação se agravou no final de outubro, quando, ao responder um pedido de autorização de manifestação da oposição, a polícia da Nicarágua afirmou que “não autoriza e nem autorizará mobilizações públicas a pessoas, associações ou movimentos que tenham participado e estão sendo investigadas por suas ações na frustrada tentativa de golpe de Estado”.
Recentemente, Ortega tem se voltado contra os meios de comunicação que falem mal de seu regime. Em 1º de dezembro, ordenou que as operadoras de TV por satélite na Nicarágua retirassem de sua grade o sinal do canal de oposição "100% Noticias", um dos poucos veículos a cobrir as manifestações contra o governo. Três dias depois, a polícia orteguista tirou do ar a rádio Darío, em León, que também é um veículo crítico ao regime. Segundo o jornal La Prensa, houve intimidação a oito trabalhadores que estavam nos estúdios da rádio no momento em que a polícia ordenou o desligamento dos equipamentos.
Além destas violações, é preciso lembrar das vidas perdidas em respostas violentas do regime aos protestos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) estima 325 mortos desde que os protestos começaram, em 18 de abril, mas organizações não governamentais locais estimam um número ainda maior. A Associação Nicaraguense de Direitos Humanos estimou, no fim de novembro, que o número de vítimas fatais em protestos tenha chegado a 545. Uma das vítimas foi a brasileira Raynéia Gabrielle Lima, estudante de medicina que foi morta com tiros de metralhadora em Manágua.
Considerando tudo isso que está acontecendo, por que Ortega continua no comando da nação centro-americana?
Para Jose Miguel Cruz, diretor de pesquisa do Centro Kimberly Green para a América Latina e Caribe da Universidade Internacional da Flórida, Ortega e seu partido, o FSLN, construíram uma base de apoio social e político sobre um grande sistema de clientelismo político, o que lhes permite mobilizar um grupo significativo de pessoas para neutralizar os protestos a partir das organizações governamentais.
Além disso, o apoio do empresariado aos protestos contra Ortega é questionável, na opinião de Cruz. Segundo ele, “as elites econômicas da Nicarágua têm muitos negócios com Ortega e sua família e, embora as elites digam que apoiam os protestos, na prática elas não se voltaram contra Ortega porque temem a instabilidade política e social que surgiria com a queda do regime, já que não há uma liderança política clara nas forças da oposição”.
É também esta falta de uma figura opositora forte que contribui para a permanência de Ortega. Segundo Kai Thaler, professor assistente de Estudos Globais da Universidade da Califórnia em Santa Barbara (UCSB-EUA), a exitosa campanha de repressão fragmentou ainda mais oposição, e quando não há uma organização de oposição clara ou líderes de oposição carismáticos também fica mais difícil manter a atenção internacional para aumentar a pressão sobre o ditador.
Para Thaler, há falta de uma ação internacional mais firme, mesmo com Ortega tendo sido condenado por esquerdistas como o ex-presidente uruguaio José Mujica e o intelectual americano Noam Chomsky, e com sanções e declarações firmes dos Estados Unidos e de outros países latino-americanos.
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“No entanto, não tem existido uma discussão séria sobre a intervenção internacional e não há indícios de que o Tribunal Penal Internacional possa investigar Ortega e seu regime por crimes contra a humanidade. Em um contexto de crescente política autoritária em todo o espectro ideológico na América Latina e no mundo, quando um líder muito mais violento como Bashar al-Assad permanece no poder e é discutido como um possível líder para os tempos de paz na Síria, Ortega pode calcular que pode permanecer no poder sem consequências internacionais duradouras”, conclui Thaler.
Bases de Poder
Ortega tem mantido um núcleo de partidários dentro da Nicarágua que tem se dedicado a seu partido (FSLN) e se beneficiado do longo tempo de Ortega no poder, seja por meio de programas sociais do governo e oportunidades de emprego, ou benefícios ligados aos Gabinetes da Família locais, que são supervisionados por Rosário Murillo.
Outra fonte de poder, segundo Thaler, é a polícia e os paramilitares, inicialmente organizados em torno da Juventude Sandinista. Os militares não têm reprimido abertamente os protestos, nem emitido declarações diretas contra os manifestantes, mas existem provas sólidas que armas militares têm sido usadas na repressão.
Internacionalmente, Ortega tem o apoio do ditador venezuelano Nicolás Maduro, apesar de que, com a crise econômica e política, o país sul-americano não pode proporcionar mais ajuda econômica à Nicarágua. Cuba também dá apoio, mas não tem verbalizado com frequência.
E finalmente há uma rede de ativistas internacionais antiimperialistas que afirmam que os protestos são respaldados pelos Estados Unidos contra um governo de esquerda, apesar de que Ortega não seguiu uma agenda política e econômica de esquerda desde que chegou ao poder em 2007 e não há evidência de nenhum plano dos Estados Unidos para intervir na Nicarágua.
Dificuldades econômicas podem levar à queda de Ortega
Os protestos pela saída de Ortega tendem a continuar, embora sejam menores que nos primeiros meses da crise, já que o governo continua atacando os críticos e até mesmo proibindo manifestações contra o regime.Mas a pergunta chave é: por quanto tempo o regime poderá fornecer recursos a seus partidários e às forças de segurança à medida que a economia do país enfraquece?
Os últimos oito anos na Nicarágua foram marcados por um forte crescimento, superior a 4,5% ao ano. Mas, a grave crise política detonada a partir de abril, com os protestos contra a reforma previdenciária e contra o ditador, acabaram com o sonho dourado. No melhor cenário, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia do país centro-americano voltará a crescer só em 2020. E a um ritmo bem menor. Para 2018 o órgão internacional prevê uma queda de 4% no Produto Interno Bruto (PIB) do país.
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A expectativa de Ortega é que, assim como aconteceu após o golpe militar na Tailândia, o turismo se recupere. “Tem havido uma fuga de recursos do país e muitos investidores continuarão desconfiados, especialmente com as novas sanções dos Estados Unidos”, afirmou Thaler, para quem a situação econômica da Nicarágua é mais delicada do que a da Venezuela, que possui mais recursos naturais. “Uma crise econômica prolongada na Nicarágua e a redução da ajuda ao regime podem ajudar a minar o poder de Ortega”, concluiu.
Waddell concorda e resume: “governar sem dinheiro não é o mesmo que governar com dinheiro”. Ele explica que nos últimos dez anos, o FLSN se consolidou o poder, mas também desfrutou de uma década de crescimento econômico e apoio incondicional da Venezuela, mas hoje a situação é diferente porque a economia nicaraguense está em recessão e a Venezuela está passando por uma crise própria.
“Os nicaraguenses não se submetem discretamente à ditadura, pois mesmo que Ortega possa ter suprimido os protestos e mantido o poder por enquanto, a crise e o desafio às tentativas da família Ortega de criar uma dinastia estão longe de terminar”, concluiu Thaler.