O ministério da Defesa de Israel confirmou, recentemente, que o caça de última geração F-35 realizou suas primeiras missões de combate. O equipamento pode ser usado como exemplo das relações geopolíticas do mercado de armamento internacional e seu panorama atual, com aumento do comércio e de gastos armamentistas, ligados à diversos conflitos regionais pelo globo. O evento, que é chamado de “batismo de fogo”, foi mais uma demonstração da superioridade tecnológica e orçamentária das forças armadas israelenses em relação aos seus principais antagonistas: Irã, Síria, Líbano e Hezbollah.
Importante notar que os mercados de armas de pequeno porte e o de armamento e sistemas são mercados distintos, muitas vezes medidos e avaliados em separado. No primeiro caso se encaixam todo tipo de armamento pessoal, desde revólveres até lançadores de foguetes portáteis, um cenário em que países menos desenvolvidos costumam ter um peso maior, tanto como clientes quanto como fornecedores. E em que clientes obscuros são mais comuns. O segundo caso é o dos grandes fabricantes, equipamentos de última tecnologia e um mercado com um círculo mais restrito de fornecedores.
O F-35 e o Oriente Médio
O caça multifunção F-35 é um avião de última geração, com capacidade stealth (“invisível” aos radares) e um custo unitário médio de 100 milhões de dólares, dependendo do variante. Seu fabricante principal é a gigante Lockheed Martin dos EUA, a maior empresa de defesa e tecnologia do mundo. Seu faturamento de 2017 foi de mais de 51 bilhões de dólares e a empresa tem mais de sessenta e seis mil contratos com o governo dos EUA, num total de 43 bilhões de dólares.
A empresa também é uma das maiores donatárias para campanhas políticas nos EUA. No presente ciclo eleitoral de 2018 a empresa já doou mais de 1.3 milhão de dólares, 66% do montante para candidatos republicanos e 34% para candidatos democratas. Na última eleição presidencial, dez pré-candidatos receberam doações da empresa, incluindo Donald Trump e Hillary Clinton.
Outras empresas também participam da produção do F-35, que é fruto de um projeto conjunto, o Joint Strike Fighter (JSF), lançado em 1996, e que é o maior projeto de armamento da história. Algumas estimativas colocam um valor total de 1.5 trilhão de dólares até 2070; o montante inclui o custo de desenvolvimento, de mais de 50 bilhões de dólares, custos de venda, unitários e de operação. Para viabilizar um programa tão ambicioso, a secretaria de Defesa dos EUA articulou um programa internacional com seus principais aliados.
Além do cliente principal (EUA), fazem parte o Reino Unido (Parceiro nível 1), Itália e Países Baixos (Nível 2), Austrália, Canadá, Dinamarca, Noruega e Turquia (Nível 3), além de Israel e Cingapura como “cooperação de segurança”. Todos esses países teriam prioridade em suas encomendas, parte na fabricação e nos lucros de vendas realizadas para outros países, como a Coreia do Sul. O Japão entrou posteriormente na empreitada, e diversas unidades serão fabricadas pela gigante Mitsubishi.
Um emaranhado de relações políticas e econômicas estabelecido ao longo de duas décadas estaria sujeito à mudanças de percurso, embora improváveis. E é exatamente o que ocorre atualmente. A Turquia, um dos parceiros de desenvolvimento, prevê o recebimento de seu primeiro avião no dia 21 de junho, de um lote inicial de trinta. O recebimento dos cem aviões desejados e de sua tecnologia sensível, entretanto, está ameaçado.
Três senadores dos EUA, de ambos os partidos, propuseram um projeto para isso. O projeto pretende restringir o fornecimento dos caças e também limitar a transferência de tecnologia e conhecimento técnico relacionados à manutenção dos aviões. Alegam que a Turquia, no governo do presidente Recep Erdogan, adotou uma postura de “sabotar” a OTAN e de seguidas violações de direitos humanos, incluindo a detenção de um cidadão dos EUA, o pastor Andrew Brunson.
O principal motivo, entretanto, está ligado às relações turcas com a Rússia. Após um hiato de distensão, do final de 2015 até meados de 2017, os dois países estão cada vez mais próximos. A aproximação inclui polpudos contratos para a construção de uma usina nuclear e o fornecimento de novíssimos sistemas antiaéreos russos para a Turquia.
Na época, o governo turco justificou sua compra com críticas aos EUA, que se negaria em vender equipamentos de sensibilidade similar. Não é explícito, mas existe o temor de fornecimento de tecnologia sensível a um país que poderia, direta ou indiretamente, auxiliar um rival geopolítico - a Rússia; mais ainda, tal auxílio não necessariamente seria com consentimento, mas via a obtenção de inteligência, a boa e velha espionagem.
A distensão entre Ancara e Washington no setor de armamentos só não está maior pois a Turquia possui garantias contratuais. Esse afastamento é enorme desejo da Rússia, que não ganharia apenas em dinheiro, mas também em presença e em longo prazo. A principal regra do mercado armamentista é que, quando um país quer se armar, ele vai encontrar um fornecedor que se adeque ao seu bolso e ao seu gosto.
Mercado em expansão
Hoje o mundo desembolsa mais em gastos militares do que nas duas últimas décadas. Quando o JSF foi lançado, em 1996, o mercado armamentista mundial vivia outra era. De 1990, com o fim da Guerra Fria, até 1999, o volume constante em dólares dos gastos militares mundiais diminuía todo ano. Somado ao crescimento econômico, a porcentagem de gastos militares foi de 3.1% do PIB mundial em 1990 para 2.1% do PIB mundial em 1999.
Nos anos 2000 inicia-se um progressivo aumento dos gastos militares mundiais, que atinge um pico em 2009. Esse patamar se mantém até o biênio 2016-2017, quando ocorre um novo crescimento; no último ano, de cada cem dólares, o mundo usou 2,2 em gastos militares, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo (na sigla em inglês Sipri), principal referência para tais medições. Proporcionalmente, pouco.
Os últimos anos são mais expressivos em números brutos. A previsão da soma dos gastos militares mundiais em 2018 é de 1.7 trilhão de dólares. Importante notar que gastos militares não abrangem apenas armamento, mas também gastos de pessoal e de operação. O maior orçamento militar do mundo é o dos EUA, que corresponde à 35% do gasto mundial, quase o triplo da China, a segunda colocada.
Em relação ao mercado internacional de armas, algumas tendências podem ser observadas comparando os últimos cinco anos com os cinco anteriores, de 2008 a 2012. Em ambos os períodos, os maiores exportadores são os EUA, com 50 bilhões de dólares exportados nos últimos cinco anos, dez a mais do que no período anterior. Isso corresponde a 34% do mercado, com 98 países como clientes. O segundo maior exportador é a Rússia, em ambos os períodos, porém, com uma queda de suas vendas.
Outro país que sofreu queda nas exportações nesses períodos foi a Ucrânia, que caiu da 8ª para a 11ª posição. A Suécia também exportou menos armas. Se países estão exportando menos em um mercado que aumentou, quais países assumiram esse papel? França, Alemanha e Reino Unido mantiveram posições de destaque, mas o aumento de exportações teve origem em Israel, Coreia do Sul e China, principalmente. A soma das exportações desses países foi de 9,7 bilhões para 14,2 bilhões de dólares.
Esses três países possuem em comum o fornecimento de armamento e tecnologia para qualquer bolso; tanto equipamento moderno quanto peças ou sistemas para a modernização de arsenais antiquados, estendendo sua vida útil. Ou seja, tem grande clientela em países menos desenvolvidos ou envolvidos em conflitos e que precisam de suprimentos constantes. Um mercado similar ao explorado pelo Brasil, algo que merece um olhar próprio.
O caso mais significativo dos últimos anos foi certamente o do Japão. O país, por suas leis internas e pelos tratados impostos ao fim da Segunda Guerra Mundial, tem limites na atuação de suas forças armadas, no seu orçamento, no tipo de equipamento que pode possuir e, até recentemente, não exportava armamento.
Tudo isso mudou em 2014, quando o premiê Shinzo Abe propôs, e conseguiu, mudança legislativa para o retorno japonês ao mercado de armas. Em um mundo que voltou à comprar armas, a competitiva indústria japonesa está ainda buscando seu espaço; recentemente, perdeu a concorrência para o novo contrato de 38 bilhões de dólares para o novo submarino da marinha australiana, maior contrato militar da história do país.
Tal postura não é apenas decisão econômica, já que o Japão em si também passa por modernização de suas forças. E é no Extremo Oriente que estão dois dos pontos de maior tensão internacional do século XX: a península coreana e o Mar do Sul da China, com ilhas e zonas de exploração disputadas por meia dúzia de países. Todos aumentaram seus gastos militares recentes e realizaram polpudas compras de modernos navios bélicos.
Compradores
A comparação feita anteriormente, nos mesmos períodos, agora em um ranking dos países que mais importaram armamentos, também é significativa. De 2008 a 2012, dos vinte maiores compradores de armas, sete estavam no Grande Oriente Médio, conceito geopolítico que abrange do Paquistão ao leste até o Marrocos ao oeste. Já nos últimos cinco anos, o número vai para dez, com a adição de Egito, Catar e Omã. Em números, de 29.4 bilhões de dólares para 52.6 bilhões.
O caso catari talvez seja o mais visível. Até 2014, o país não gastava mais do que cem milhões de dólares por ano em compra de armamento. Nos últimos três anos, foram mais de dois bilhões. A escalada militar catari foi vista com desconfiança por seus vizinhos, um dos motivos do ilegal bloqueio das fronteiras cataris pelos países do golfo aliados da Arábia Saudita. Os sauditas, por sua vez, mais que triplicaram suas compras de armamento nos períodos comparados.
Característica notável do mercado comprador de armas do Oriente Médio é que a instabilidade regional afeta o número de parceiros. Novamente, um contrato de fornecimento de equipamento é um contrato de longo prazo, que envolve manutenção, tecnologia e questões políticas. Para evitar a dependência de apenas um aliado, cujos interesses podem mudar rapidamente na região, os países buscam diversos fornecedores.
O Egito tem realizado grande número de vultosos contratos de compras. Jatos e helicópteros russos, franceses, britânicos e dos EUA. Navios de desenho e tecnologia francesa que serão construídos pelo estaleiro estatal do país. Embora o Egito seja o maior operador estrangeiro do principal carro de combate dos EUA, o M1, o país também assinou contrato para fabricar quinhentos carros de combate russos no país, incluindo transferência de tecnologia.
Ou seja, caso as relações entre Egito e um dos seus fornecedores sofra algum prejuízo, o país não se verá desamparado no que concerne ao seu equipamento em meio uma região complicada; no caso egípcio, sua fronteira sul também tem passado por momentos de tensão. Como exemplo histórico, a Argentina, durante a guerra das Malvinas, em 1982, usava grande quantidade de equipamento francês. A França, por sua vez, não quis correr o risco de causar uma crise com os vizinhos britânicos, deixando os argentinos em maus lençóis.
Tais exemplos podem parecer pequenos perante os grandes projetos de novos armamentos das principais potências, como os novos carros de combate e mísseis russos anunciados por Putin em discurso recente. Além disso, existem exceções, com parcerias estabelecidas e em contextos geopolíticos sólidos, como a iniciativa conjunta PAK FA, entre Rússia e Índia.
Existe grande importância de um aumento, em todos os parâmetros, no mercado armamentista, especialmente por potências regionais. Explicita um generalizado receio de conflitos regionais, seja por desconfiança entre vizinhos, por defesa de seus interesses ou por temores de que um conflito interno transborde além das fronteiras originais; o caso da guerra civil síria ou da tensão no Líbano entre o exército libanês e o Hezbollah.
Porém, não é possível se preparar para um conflito regional sem despertar o mesmo efeito nos outros estados daquela região. Se um país amplia ou moderniza suas forças armadas, seu vizinho fará o mesmo, iniciando um ciclo vicioso, a corrida armamentista. E, no século XXI, o efeito dominó de corridas armamentistas é ainda mais amplo; novamente, vide o caso sírio e os múltiplos atores envolvidos. Manter olhar atento com esse mercado não é alarmismo, ao contrário. Colabora em entender cenários internacionais e em manter a sanidade.
*Filipe Figueiredo é graduado em História pela Universidade de São Paulo e comenta política internacional no blog Xadrez Verbal.