Enquanto o primeiro julgamento estadual relacionado com a epidemia de opioides (analgésicos que provocam dependência e causam uma epidemia de overdoses nos nos Estados Unidos) começa em no estado de Oklahoma nesta terça-feira (28), as famílias que perderam entes queridos por overdose de opioides veem uma chance de responsabilizar as empresas farmacêuticas após anos de espera por uma indenização.
Gail Box acompanhará o julgamento com atenção, mas ela não estará no tribunal em Norman, a cidade onde ela interagiu pela última vez com seu filho Austin em maio de 2011, quando ele se formou na Universidade de Oklahoma. Cinco dias depois, ele estava inconsciente em um hospital após uma overdose. Foram encontrados em sua corrente sanguínea cinco analgésicos prescritos e um medicamento ansiolítica. Ele morreu no mesmo dia, aos 22 anos.
"Eu simplesmente não posso ir lá", disse ela sobre a cidade onde seu filho jogava no time de futebol americano da universidade. "É muito doloroso para mim ir para lá."
Box está convencida de que uma punição financeira rígida contra as empresas farmacêuticas fornecerá a responsabilização pela morte do filho, bem como fornecerá tratamento e outros serviços que os usuários de drogas precisam.
"Isso não vai curar meu coração partido", disse ela. "Isso não vai me impedir de chorar pelo meu filho. Mas espero que isso impeça o luto pelos filhos e filhas de outras pessoas."
Muita coisa mudou desde que o procurador geral de Oklahoma, Mike Hunter, processou três empresas farmacêuticas e suas subsidiárias 23 meses atrás, alegando que elas são as responsáveis pela situação de calamidade causada pelos opioides no país.
O personagem central da epidemia de opioides, a Purdue Pharma, fez um acordo de US$ 270 milhões com o estado e não será julgado no tribunal do juiz Thad Balkman. No domingo, um segundo réu, a Teva Pharmaceuticals, fez um acordo fora do tribunal US$ 85 milhões. O estado retirou todas as acusações, exceto uma, contra a empresa remanescente – a Johnson & Johnson – e está definindo sua estratégia com base em um novo uso da legislação de Oklahoma.
Um clube do qual ninguém quer participar
Durante os dois anos de disputas pré-julgamento, a comunidade de pessoas que perderam entes queridos por causa de overdoses de opioides ou que viram vidas serem destruídas pelo vício tem crescido constantemente. Em Oklahoma e em outros lugares, essas pessoas estão entre os mais interessados no resultado do julgamento.
"É um clube do qual ninguém queria participar", disse Bill Guy, 69 anos, um sindicalista de professores de Oklahoma cujo filho de 34 anos, Chris, morreu de overdose de heroína em 2016. Ele quer que as empresas sejam responsabilizadas por mortes como as de seu filho e ele quer evitar a morte e o vício de outras pessoas no futuro. "Não é só uma retribuição para mim."
A taxa de overdose em Oklahoma é de 20,1 casos por 100.000 habitantes. Comparada à de outros estados, ela é intermediária; muito menor do que a taxa de 57,8 da Virgínia Ocidental, mas muito pior do que a de 8,1 do Nebraska, de acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de 2017.
Mortes por overdose de opioides prescritos caíram em Oklahoma depois de atingir o pico de 478 em 2012, segundo dados do estado. Em 2017, 277 mortes foram atribuídas a analgésicos prescritos.
O número total de mortes por overdose no estado continua a subir gradualmente. No entanto, estão em primeiro lugar, nos últimos anos: álcool, metanfetamina e opioides ilegais, como fentanil e heroína. Em 2017, 743 pessoas morreram de overdose.
Compensações para reduzir a crise
Como mais de 1.600 outros estados, cidades, condados, tribos nativas americanas e outros grupos que entraram com ações judiciais, Oklahoma afirma que as empresas farmacêuticas provocaram a crise das duas últimas décadas, ignorando o crescente número de vítimas e, em alguns casos, promovendo as drogas de maneira enganosa.
Oklahoma está buscando uma compensação de bilhões de dólares para reduzir a crise, alegando que serão necessários até US$ 17,5 bilhões nos próximos 20 a 30 anos para compensar os danos. Sua única acusação é que as empresas farmacêuticas criaram um "dano público", uma acusação historicamente feita quando as atividades de uma parte afetam negativamente as outras – uma casa que serve de fábrica de crack em um bairro ou uma fábrica que polui um rio, por exemplo.
As empresas afirmaram que comercializaram de forma responsável os narcóticos legítimos e aprovados pela agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (FDA) para o tratamento da dor e não podem ser vinculados a mortes por abuso ilegal de drogas.
Em um comunicado divulgado na sexta-feira, John Sparks, advogado da Johnson & Johnson e de sua subsidiária, a Janssen Pharmaceuticals, disse que "a Janssen está confiante de que agiu responsavelmente no marketing e na promoção de seus produtos. Seus remédios aprovados pelo FDA ajudavam pessoas com dor, e a Janssen trabalhou com sucesso com os reguladores para evitar o desvio e o abuso de seus medicamentos opioides. "
Destino dos fundos
Balkman se recusou a adiar a data da audiência desta terça-feira. O caso de Oklahoma é o primeiro de mais de 40 ações judiciais estaduais a serem julgadas e está sendo observado com atenção em outros lugares.
A Purdue Pharma, empresa amplamente acusada de provocar a epidemia com a introdução e a promoção de seu analgésico OxyContin, em 1996, não estará sentada entre os réus. A empresa fez um acordo com o estado em março, e concordou em pagar US$ 270 milhões, grande parte desse valor financiará um instituto de pesquisa e tratamento na Universidade Estadual de Oklahoma.
Mark McBride, deputado do estado de Oklahoma da cidade de Moore, disse que muitas comunidades diretamente afetadas pela crise dos opioides desviaram sua atenção do caso nos últimos meses, quando souberam que a maior parte da compensação da Purdue iria para uma escola, e não para as localidades. McBride e outros legisladores se opuseram à decisão, argumentando que elas deveriam ter sido autorizadas a decidir como gastar os fundos. Ele lamentou o fato de que as cidades que enfrentam o pior da crise receberam apenas US$ 12,5 milhões da Purdue.
"Eu não acho que as pessoas realmente entendam que há algo assim acontecendo", disse McBride sobre o julgamento. Os fundos do acordo da Teva vão para o estado, e detalhes sobre como serão investidos ainda estão sendo discutidos.
Becky O'Dell, diretora executiva da Parents Helping Parents, um grupo de apoio de 1.200 membros para pais de crianças com transtornos por abuso de substâncias, disse que os membros de sua organização estão interessados em responsabilizar as empresas farmacêuticas pelos danos em Oklahoma.
"O que eu ouço é que eles devem ser responsabilizados", disse ela. "Eu acho que eles só querem que a epidemia seja resolvida. Eles só querem que o problema seja resolvido".
A primeira dose
Austin Box era um atleta do ensino médio em Enid, Oklahoma, onde sofreu a primeira de uma série de lesões no futebol, disse sua mãe. Ele, sua família e seus médicos administraram cuidadosamente o controle da dor com remédios que não exigem receita médica e fisioterapia, sem usar opioides até que ele rompeu um disco em sua coluna antes de seu último ano no Oklahoma em 2010, disse ela. Ele recebeu morfina no hospital e uma receita para um analgésico opioide, sem repetições, quando recebeu alta.
Gail Box acredita que isso foi o suficiente para o filho ficar viciado. Ele começou a adquirir opioides de amigos, disse ela, para controlar sua dor e o problemas de saúde mental causados pelos ferimentos. Seu marido, Craig Box, recusou-se a ser entrevistado porque ele poderia ser chamado como testemunha no julgamento.
Depois de se formar em 14 de maio de 2011 e de voltar para casa depois de uma viagem de carro com seu pai, Austin Box foi encontrado inconsciente em 19 de maio na casa de um amigo em El Reno. Os médicos não conseguiram salvar sua vida.
Gail e Craig Box criaram uma fundação em nome de Austin e Gail fala em reuniões em todo o estado cerca de quatro vezes por mês. Ela também atuou na diretoria do Departamento de Saúde Mental e Serviços de Abuso de Substâncias do estado, onde conheceu Hunter.
"Eu continuarei me criticando por não perceber como os opioides eram – e são – perigosos", disse ela. "Quero mandar uma mensagem para as empresas farmacêuticas. Elas são responsáveis, elas são diretamente responsáveis, pelas mortes como resultado de não serem totalmente honestas sobre a natureza aditiva dos opioides receitados".