A deputada americana Nancy Pelosi deve reassumir a presidência da Câmara dos Representantes nesta quinta-feira (3), cimentando seu lugar como a mulher mais poderosa da política americana. Será um capítulo imprevisível na carreira histórica de Pelosi, que tem 78 anos e foi a primeira mulher a ocupar a presidência da Câmara na história dos Estados Unidos, entre 2007 e 2011.
Apesar de já ter ocupado o cargo antes – até mesmo em condições semelhantes, durante uma presidência republicana –, Pelosi enfrenta um novo desafio em seu novo papel como principal adversária do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tendo que, por exemplo, equilibrar sua estima pelo cargo de presidente e seu desprezo mal velado pelo homem quem o detém.
"Eu respeito o cargo que ele ocupa e as agências do governo que ele designa - acho que os respeito mais do que ele, olhando para quem ele nomeou para esses cargos", disse ela ao Washington Post.
Navegar nesse dilema afetou as negociações para acabar com a paralisação parcial do governo, que se estende por mais de duas semana. Trump quer alocar recurso no orçamento do governo para construir um muro na fronteira entre Estados Unidos e México, e as negociações sobre este impasse vão definir as relações entre Pelosi e Trump.
Em dezembro, durante uma reunião no Salão Oval que foi transmitida ao vivo, os dois bateram boca sobre o orçamento para o muro. Naquele mesmo dia, depois de deixar a Casa Branca, Pelosi disse em uma reunião privada com colegas democratas que o muro era "como uma questão de masculinidade" para Trump, um comentário aparentemente calibrado para enfurecer o presidente – e que prontamente vazou para a imprensa.
Trump, por sua vez, expressou respeito por Pelosi ao alfinetá-la.
"Eu gosto dela. Você acredita? Eu gosto da Nancy Pelosi. Quero dizer, ela é durona e inteligente", disse ele após as eleições de meio de mandato, quando os democratas reconquistaram a maioria da Câmara. Mais tarde, ele se ofereceu, com tom de ironia, para solicitar votos dos republicanos quando ela estava lutando para convencer os democratas a elegê-la como líder do partido.
Sobre as negociações com Trump, Pelosi falou em entrevista ao Post: “Temos que estipular um conjunto de fatos se vamos negociar. Mas ele simplesmente não fará isso. O que ele fala sobre o muro não é verdade. Não é verdade que terroristas estão passando por cima do muro, que pessoas com doenças estão tomando conta do país. Quero dizer, é isso mesmo?”
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Além de questões pontuais, Pelosi diz que vê em Trump a falta de "valores compartilhados pelo nosso país" e a crença na governança, bem como um "desrespeito pela dignidade e pelo valor de uma pessoa".
No entanto, ela ainda fala rotineiramente – se não um tanto mecanicamente – sobre seu desejo de trabalhar em conjunto com Trump em questões de interesse mútuo, que ela procuraria "iluminar o caminho" e "estender a mão da amizade".
Mas Pelosi pode ter dificuldade em mascarar seu desdém por Trump. Muitas vezes isso é implícito, quando fala efusivamente sobre o caráter pessoal de George W. Bush ou cita o discurso de despedida de 1989 de Ronald Reagan, no qual ele disse que a nação deveria estar "aberta a qualquer um com vontade e coragem para chegar aqui".
Pelosi retornou à Casa Branca na quarta-feira (2) para uma reunião a portas fechadas, acompanhada por um elenco mais amplo de líderes do Congresso, algo que vários assessores democratas falaram ser um esforço da Casa Branca para evitar a repetição do fiasco anterior. Em vez de palavras, desta vez ela argumentou com o poder de quem vai assumir a liderança da Câmara dos Representantes.
Ela declarou que os democratas votariam na quinta-feira para reabrir o governo sem o financiamento do muro – uma medida orquestrada para isolar Trump e dividir o Partido Republicano ao seu redor. "Estamos pedindo ao presidente que abra o governo", disse Pelosi. "Estamos dando a ele um caminho republicano para fazer isso. Por que ele não faria isso?"
Habilidade para lidar com opositores
Amigos, familiares e inimigos, mesmo aqueles dentro de seu partido que pressionaram para que ela se afastasse e desse lugar à próxima geração de democratas, elogiam suas habilidades políticas.
Apesar da imagem de Pelosi como uma partidária liberal, ela tem uma longa história de trabalho produtivo com os republicanos – primeiro como legisladora júnior, atuando em comitês bipartidários da Câmara, e mais tarde durante seus dois primeiros anos como presidente da Câmara, lidando com o então presidente Bush.
Como Trump, Bush na época tinha índices de aprovação fracos e inspirou uma profunda inimizade na base democrata, a tal ponto que alguns parlamentares pediram seu impeachment. Pelosi era pessoalmente contra a Guerra do Iraque e fez campanha contra o conflito, mas nunca alguém a ouviu falar sobre a masculinidade de Bush ou qualquer outro aspecto de seu caráter.
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Bush assinou várias leis importantes aprovadas pelos democratas, liderados por Pelosi, incluindo leis de energia, impostos e ajuda externa, e nos meses finais de sua presidência, os líderes trabalharam juntos para enfrentar uma crise financeira.
"O presidente Bush estava muito empenhado em dar continuidade ao que havia sido iniciado [no Iraque], e então eles entraram em choque", disse Daniel Meyer, que atuou como diretor de assuntos legislativos de Bush durante a participação de Pelosi. "Mas foi uma relação profissional. Não acho que houvesse animosidade pessoal de forma alguma."
Suas interações iniciais com Trump, Meyer disse, prenunciam um relacionamento diferente: "Ele não vai se segurar, e isso reflete seu estilo. E ela, aparentemente, vai responder de alguma forma."
Pelosi ainda fala com carinho de Bush e seu falecido pai, cuja fotografia ela mantém em seu escritório no Capitólio, ao lado dos presidentes John F. Kennedy e Barack Obama. E ela rejeita inteiramente qualquer comparação entre suas relações com Bush e Trump.
"Ele era republicano, eu sou democrata", disse ela sobre Bush. "Temos opiniões diferentes sobre o direito de uma mulher escolher [o aborto], a guerra no Iraque, esse tipo de coisa. Mas em nossas negociações reconhecemos certos fatos".
Experiência
Em um ponto da entrevista ao Post, Pelosi notou que Trump foi "eleito - não pela maioria do voto popular - mas, mesmo assim, para ser presidente dos Estados Unidos". Em outro, ela disse que suas relações com Trump foram muito respeitosas, "exceto quando ele disse que eu não posso falar por mim mesma", uma referência ao que Trump mencionou na fatídica reunião sobre sua dificuldade em obter votos para se tornar presidente da Câmara. Ela garantiu os votos necessários um dia depois.
Pelosi negou tentar criticar Trump abertamente quando falou que o muro era uma questão de "masculinidade". "Eu não acho que ele tenha qualquer preocupação sobre isso. Ele gosta de publicidade, bom ou ruim, não gosta?", disse, acrescentando: "É uma coisa de garoto - talvez eu deva dizer dessa forma. Talvez seja uma coisa de garoto".
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Os aliados de Trump na Casa Branca e no Capitólio gostam de apontar - e potencialmente explorar - as dificuldades que Pelosi provavelmente terá em administrar o agressivo flanco esquerdo dos democratas. A representante eleita Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, tuitou críticas a líderes democratas na segunda-feira sobre a composição de um comitê especial de mudança climática e anunciou na quarta-feira que votaria contra mudanças de regras apoiadas por Pelosi.
Mas Pelosi tem mais experiência em gerenciar essas dinâmicas do que eles imaginam. A ex-congressista Lynn Woolsey, líder do bloco democrata contrário à guerra do Iraque, disse que Pelosi habilmente administrou uma facção mais agressiva do seu partido enquanto brigava com Bush a respeito do Iraque.
Trump, disse Woolsey, "vai saber que está enfrentando algo muito real e muito difícil".