Reza o clichê que na guerra, a primeira vítima é a verdade. O conflito iniciado na Ucrânia em 24 de fevereiro não parece ser diferente, com Ocidente e Rússia opondo narrativas enquanto a guerra segue adiante.
Nos últimos dias, essa disputa chegou ao número de militares russos mortos desde o início da invasão. Tudo começou na quarta-feira passada (23), quando um oficial da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) informou que a Rússia pode ter sofrido entre 30 mil e 40 mil baixas na Ucrânia, entre militares mortos, feridos, feitos prisioneiros e desaparecidos. Desse contingente, entre 7 mil e 15 mil teriam morrido.
O oficial justificou que a estimativa de 30 mil a 40 mil baixas russas foi baseada num cálculo padrão de que em guerras um exército contabiliza três militares feridos para cada morto.
O assunto era tabu dentro da Rússia. No início de março, pouco após o início da guerra, o Ministério da Defesa havia relatado que 498 militares russos haviam sido mortos em ação e cerca de 1,5 mil feridos. Depois, o número de baixas não foi atualizado durante semanas.
Na segunda-feira passada (21), o jornal Komsomolskaya Pravda, considerado pró-Kremlin, publicou que 9.861 militares russos haviam sido mortos na Ucrânia e outros 16.153 foram feridos. Depois, a informação sumiu do site e o jornal alegou que havia sido hackeado.
Dois dias após a divulgação da estimativa da OTAN, na última sexta-feira (25), o exército russo finalmente atualizou os números e informou que 1.351 militares do país já morreram no conflito, enquanto 3.825 foram feridos – números bem inferiores aos estimados pelo oficial da aliança militar do Ocidente.
Na segunda-feira (28), o Estado Maior das Forças Armadas da Ucrânia informou que a Rússia já teria sofrido cerca de 17 mil baixas militares na guerra, mas não detalhou quantas dessas seriam por mortes e quantas por ferimentos.
Autoridades da Ucrânia alegaram que há tantos corpos de militares russos acumulados em algumas regiões do país que caminhões-frigoríficos estão sendo enviados para preservá-los, mas que o exército russo também teria trazido câmaras crematórias móveis para cremar os cadáveres ainda em território ucraniano.
O Ministério do Interior da Ucrânia criou um site e um canal no Telegram, onde disponibiliza fotos dos corpos e documentos encontrados com eles para que famílias russas os identifiquem. O endereço do site, 200rf.com, é uma referência mórbida ao Cargo-200, um código militar utilizado para os corpos transportados em caixões revestidos de zinco, de militares soviéticos mortos durante a guerra que a então União Soviética travou no Afeganistão entre 1979 e 1989.
Na Ucrânia, chama especialmente a atenção o número de generais russos que já foram mortos: sete até este início de semana, segundo as autoridades ucranianas, um número considerado alto por especialistas.
Alexander Grinberg, analista do Instituto de Segurança e Estratégia de Jerusalém, disse à France Presse que uma possível explicação é que as unidades russas utilizam equipamentos de comunicação que “são facilmente interceptados” pela Ucrânia.
O analista acrescentou que, em áreas de batalha, veículos que transportam comandantes são identificados por “antenas e outros veículos que os protegem”, o que facilita ataques ucranianos.
Especialista aponta “meio termo”
Segundo o especialista em assuntos militares Alessandro Visacro, autor dos livros “Guerra Irregular” e “A Guerra na Era da Informação”, as divergências nos dados são típicas de cenários de guerra.
“Ambas as estimativas [da Rússia e da OTAN] são plausíveis, e dentro desse contexto é certo que a OTAN procura superestimar o número de baixas nas fileiras russas e os russos tendem a apresentar um valor subestimado. Muito possivelmente, a verdade está entre esses dois números. E hoje nós não temos fontes críveis, fidedignas para nos apegarmos a uma estimativa mais confiável”, apontou Visacro, que destacou, entretanto, que em guerras o exército russo em geral tem um percentual de baixas muito superior ao de forças do Ocidente em conflitos, já que se trata de “duas formas historicamente diferentes de combater”.
Se for considerado o número mais alto informado pela OTAN, as 15 mil mortes já seriam o equivalente ao total de óbitos de militares soviéticos nos quase dez anos de presença de forças da União Soviética no Afeganistão, nos anos 1980.
A derrota nessa guerra foi tão traumática que contribuiu para a dissolução do bloco soviético e foi apelidada de “Vietnã russo” – trauma documentado pela escritora e jornalista bielorrussa (nascida na Ucrânia) Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura, no livro “Meninos de Zinco”.
Para Visacro, entretanto, não é possível comparar o número de mortes na campanha na Ucrânia com as guerras travadas no Afeganistão pelos soviéticos nos anos 1980 ou pelos Estados Unidos nas duas últimas décadas.
“No Afeganistão, fossem os norte-americanos ou os soviéticos, foi feita uma campanha de contra-insurgência, enquanto o que vemos na Ucrânia está mais próximo das operações de combate de larga escala. Por serem tipos de operação muito distintos, isso reflete no número de baixas”, justificou. Entretanto, ele acredita que a guerra na Ucrânia pode se transformar em um novo “Vietnã russo”.
“Para isso acontecer, o primeiro passo seria Moscou optar por uma ocupação territorial, e não está claro se, como ou onde isso aconteceria. Uma coisa seria uma ocupação na bacia do Donetsk, em que existe um contingente significativo de russos étnicos, e outra seria no oeste da Ucrânia, mais próximo da bacia do Dniester, porque tem outro perfil demográfico”, explicou Visacro.
“Tudo vai depender das decisões políticas que os russos vão tomar a partir dos seus ganhos estratégicos, se estes se confirmarem”, acrescentou.
Na sexta-feira, o alto comando do exército russo declarou como encerrada a fase inicial da chamada “operação militar especial” na Ucrânia e que iria se concentrar na “libertação de Donbass”, dando a entender que uma eventual ocupação do território ucraniano ficaria restrita ao leste do país.