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Zaheer Ahmad Zindani reza em uma mesquita em Ghazni, na região central do Afeganistão | JIM HUYLEBROEK/NYT
Zaheer Ahmad Zindani reza em uma mesquita em Ghazni, na região central do Afeganistão| Foto: JIM HUYLEBROEK/NYT

A última vez que Zaheer Ahmad Zindani achou que enxergava alguma coisa foi quando tinha 17 anos, em uma cama de hospital, fortemente sedado e coberto de ferimentos causados por estilhaços de uma bomba talibã. E pediu um espelho ao médico.  "Ele me disse: 'Filho, você não tem mais olhos, como vai conseguir vê-los?'. Levantei a mão para tentar sentir... eram como as cinzas restantes de um fogo que já ardeu. Não havia mais nada", ele conta. 

 Isso foi há cinco anos. Ele se lembra de que, mesmo nos momentos iniciais, quando a realidade da cegueira o fez uivar de dor, outra percepção o deixou paralisado: o relacionamento com a namoradinha de infância, que já era difícil porque a família dela não achava que ele valia muita coisa, agora estava condenado de vez. "Se tivesse perdido a visão e tivesse conquistado sua mão, ainda assim, seria feliz; mas agora não tenho nem meus olhos, nem ela", lamenta. 

 Marcha para a paz

Zindani é um dos fundadores da marcha pela paz que chegou a Cabul em junho, depois de quase 40 dias e 600 quilômetros percorridos a partir do sul do país, no auge do verão e em território devastado pelos conflitos. Ele protestava contra uma guerra que, até então, tinha lhe tirado o pai, o tio, a irmã, os olhos e seu amor. 

 Como muitos afegãos, principalmente no interior, ele não ganhou sobrenome ao nascer. Há quem escolha um na idade adulta e, depois de perder os olhos, ele optou por Zindani, que significa "prisioneiro". 

 Ao longo do caminho, quando a marcha parava em algum vilarejo para descansar, o rapaz, hoje com 22 anos, alto e belo, procurava um cantinho e deitava um pouco, perdido em pensamentos. 

 Às vezes se levantava, tateando à volta da mesquita, sentindo cada coluna, seguindo as vozes para ficar mais perto da conversa; outras, apenas sussurrava o nome do companheiro de viagem que estivesse mais perto, em cujo ombro se apoiaria durante a longa caminhada. 

"Kitab? Ei, Kitab, cadê você?".  Kitab, pai de três filhos que na verdade se chama Inamulhaq, entrou para a marcha no meio do caminho. O nome que escolheu para si significa "livro". Ele é analfabeto. [

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 Zindani também não sabe ler, mas é poeta. Na casa da família, tem mais de 50 páginas de material que ditou para os irmãos. 

 Os integrantes da marcha atravessaram cidades e vilarejos, mas era comum se encontrarem em longos trechos vazios. Era só o grupo, o céu lá no alto, o asfalto sob os pés e a vastidão do deserto à sua volta.  

 Com a mão no ombro de Kitab, Zindani recitava poemas: "Mesmo depois que eu morrer, meus olhos não se fecharão/Esperando por você, continuarei de olho na porta." 

 Quando Zindani conta a história de sua vida e de seu amor, evoca uma série de imagens, belas em detalhes, desoladoras pelo que representam. 

 Quando o rapaz tinha sete anos, sua família morava em Gereshk, na província de Helmand, e plantava papoula, trigo e uva ao longo da rodovia usada pelas forças da coalizão para levar suprimentos às unidades militares que tentavam ocupar o que então era considerado território talibã. 

 Tragédia familiar

Um dia, o pai e o tio estavam colhendo as flores e preparando os campos para o segundo plantio, o de cebola, quando foram atingidos por um ataque aéreo norte-americano, como ele conta.  "Não sobrou nada deles; não vimos nem sangue. Restou apenas uma cratera imensa. E pó." 

 Seu pai, Ghulam Wali, tinha 29 anos quando foi morto. Era alto e tinha uma barba bem aparada, exatamente como seu filho usa agora. Depois da tragédia, a família se mudou para Kandahar, para ficar perto de parentes distantes que tinham uma filha, também de sete anos. Por isso, os dois estavam sempre juntos; quando brincavam de esconde-esconde, Zindani se via escondido "de propósito" com ela. 

 "Eu gostava do jeito dela falar, caminhar, seu cheiro. Tudo. Para onde quer que fosse, eu também achava um jeito de estar. Nem sabia, mas acabava sempre me encontrando com ela." 

 Conforme os dois foram ficando mais próximos, Zindani se mudou com o que restara de sua família para outro município, onde se tornou aprendiz de mecânico. E toda vez que sua mãe ia visitar os parentes, ele ia junto, só para poder ver a garota. 

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 Quando soube que estava apaixonado? Quando os dois tinham doze anos, a caminho de uma loja.  "Eu me lembro de ter segurado sua mão. Ela segurou a minha e nós rimos." 

 Ele tinha algum dinheiro no bolso. "Compramos só dois cigarros. Voltamos para casa e fumamos escondidos no banheiro." 

 Com o passar dos anos, Zindani diz que se encontrava na oficina, às vezes embaixo de um carro, e começava a pensar nela, ensaiando o que lhe diria. Sempre que tinha chance, ia visitá-la e levava presentes: um anel, um pente, um espelho de bolso. A mãe da moça já tinha percebido o clima de romance, afirma o rapaz. "Que ela siga seu destino", costumava dizer, com um sorriso. 

 Só que essa não é a atitude típica em relação ao casamento no Afeganistão, e o pai dela, vindo de uma família de posses, não o considerava digno de sua filha. Zindani era de outra província, de uma tribo diferente, e era apenas aprendiz de mecânico. Mas o jovem sabia que tinha uma grande vantagem: era dono do coração da garota. Ela o amava. E quanto mais forte o sentimento se tornava, mais difícil para o pai se opor ao relacionamento deles. 

 Perdas

Tudo mudou, porém, quando ele perdeu os olhos.  Na noite anterior, Zindani tinha comprado duas passagens de ônibus em Kandahar. Pouco antes do amanhecer, ele e Ahmadia, a irmã de quinze anos, foram visitar parentes na província de Herat. Os dois começaram a ficar mais próximos quando ela passou a guardar seus segredos e se tornou a mensageira de seus bilhetes apaixonados. 

 Eles estavam na quarta fileira do lado oposto ao do motorista quando o ônibus passou sobre uma bomba plantada pelo Talibã. Zindani só se lembra do fogo à sua volta e de ouvir a própria voz e a da irmã gritando o nome da mãe. Ela não sobreviveu. 

 "Quando cheguei ao hospital, comecei a chamar o nome dela, mas ninguém disse uma palavra." 

 Depois da explosão, Zindani ainda tinha esperança de concretizar sua paixão, mas a família da moça deixou sua oposição bem clara: não só ele era de uma província e uma tribo diferentes como agora era cego e não poderia sustentar a família. Os pais da menina lhe arranjaram um casamento, há dois anos, e agora ela tem um filhinho. 

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 Zindani preferiu não dar nenhum detalhe sobre a garota nem sobre seus pais, para protegê-los, mas os parentes mais próximos e amigos confirmam a história.  

 Ele confessa que ainda conversa com ela de vez em quando, por telefone, em segredo, mas tenta manter a distância por respeito à sua nova família. "Na minha cabeça, eu me vejo sozinho, em um lugar onde não há mais ninguém. Caminho só, emendando um poema no outro. Sem parar. Às vezes imagino tê-la feito minha. Nos meus sonhos, fomos até o fim." 

 Faz uma pausa. "Aí, como dizem, 'Quando ergui a cabeça, não havia nada'." 

 Quando as imagens e ideias o oprimem, ele começa a pensar se ter um amor negado é melhor do que nunca ter amado. "Mas ainda não cheguei a nenhuma conclusão." 

 

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