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Feira em Maiduguri, que perdeu clientes desde que o local se tornou alvo frequente de ataques suicidas, na Nigéria, 21 de agosto de 2019
Feira em Maiduguri, que perdeu clientes desde que o local se tornou alvo frequente de ataques suicidas, na Nigéria, 21 de agosto de 2019| Foto: Laura Boushnak/ The New York Times

Abdul, de dez anos, parado na estrada de terra do vilarejo espremido entre os campos de painço, levantou a camiseta para mostrar a cicatriz recente que se estendia longitudinalmente por quase toda a barriga, resultado de um atentado suicida perpetrado pelo Boko Haram, em junho, quando um estilhaço lhe rasgou o abdômen.

Outra meia dúzia de garotos reunida à sua volta fez o mesmo, e todos tinham marcas semelhantes.

A guerra da Nigéria contra o grupo islamita Boko Haram a essa altura já deveria ter acabado. Muhammadu Buhari, ex-líder militar, foi reeleito no início deste ano depois de se vangloriar dos progressos que conseguira na luta contra os extremistas, tendo declarado repetidas vezes que eles tinham sido "tecnicamente derrotados". Recentemente, porém, admitiu que "seus membros ainda são um incômodo".

Depois de uma década inteira de conflito, o fato é que os militantes continuam se movimentando pelo interior do país com impunidade. Seus integrantes hoje contam com drones mais sofisticados que os do Exército e estão muito bem equipados depois de vários ataques bem-sucedidos a brigadas militares, segundo políticos locais e analistas.

De acordo com esses mesmos especialistas, o grupo controla quatro das dez zonas do estado setentrional de Borno, perto do Lago Chade, realizando ataques praticamente diários. Para os moradores de aldeias como Konduga, a derrota do Boko Haram parece distante. O ataque de 17 de junho que feriu Abdul e seus amigos (o sobrenome do garoto não foi divulgado para protegê-lo de represálias) também matou 30 pessoas, oito delas crianças.

São muitos os relatos que dão conta de que o Exército nigeriano está desmoralizado e na defensiva. Alguns soldados reclamam que não têm licença para voltar para casa e ver a família há três anos; suas armas e veículos estão caindo aos pedaços. Em agosto, o novo comandante da Operação Lafiya Dole, que significa "Paz pela Força", pediu publicamente a seus oficiais de campo que não se esquecessem de dar comida e água às suas tropas. Ele já é o oitavo comandante em uma década.

Os militares anunciaram em agosto que vão retirar suas tropas dos postos das regiões mais distantes e reuni-las em núcleos fortificados a que chamam "superacampamentos". Estes ficam dentro das guarnições onde, de uns anos para cá, o Exército já assentou milhares de civis – seja porque o Boko Haram os afugentou, seja porque soldados incendiaram os vilarejos onde viviam e os reuniram, garantindo proteção maior ao interior. Esses núcleos são cercados por trincheiras, para desestimular as invasões dos militantes, mas na realidade a ação só serviu para permitir que estes ganhassem maior liberdade.

Dentro do superacampamento de Bama, não faz muito tempo, um tanque camuflado avançava pela rua exalando uma fumaça azul da parte de baixo, as esteiras mais parecendo dentes moles, prestes a cair. Era pilotado por soldados sem capacete e de camisa aberta e um atirador usando uma coroa de folhas, que arrasou uma minivan estacionada, atravancando parcialmente a passagem e praticamente destruindo o veículo.

O major Ak Karma, por trás de sua escrivaninha, na sede do superacampamento de Bama, explica que um ataque fora evitado ali dias antes, mas minimizou a ameaça. "Sofremos um ou dois ataques do Boko Haram, o que não significa que o grupo possui uma grande ofensiva. Bama é uma fortaleza", garante.

Houve nova investida no dia seguinte.

A guerra devastou a população do nordeste rural da Nigéria, uma das regiões mais pobres do planeta. Mais de dois milhões deixaram suas casas, milhares foram mortos e outros tantos foram feridos, abduzidos ou obrigados a se unir à luta armada. De acordo com informação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha divulgada em setembro, há quase 22 mil nigerianos desaparecidos desde o início da crise.

Há apenas alguns anos, a situação parecia mais esperançosa: em 2015, logo depois de Buhari ter sido eleito, as forças armadas nigerianas fizeram grandes progressos, reagindo com resolução às investidas do Boko Haram: expulsaram os extremistas de Maiduguri, a capital do estado, e das cidades menores que o grupo conquistara, empurrando os guerrilheiros para os esconderijos no meio da floresta.

De lá para cá, porém, com a indefinição sobre o conflito, a atenção do país se voltou para problemas de segurança em outras paragens: as guerras de gangues e extremistas em Zamfara, no noroeste; as batalhas horrendas por disputas de terras na porção central; os assassinatos extrajudiciais cometidos por policiais; os sequestros em troca de resgate em todo o território nacional. Buhari também anunciou planos de tirar cidadãos nigerianos da África do Sul, onde estavam sendo atacados, vítimas da violência xenofóbica.

Os comandantes, acusados de manter uma estratégia defasada e ineficaz, garantem que os superacampamentos são uma opção nova e mais eficiente de lidar com a insurgência, atualmente capaz de perpetrar ataques mais sofisticados contra os militares.

Alguns oficiais, porém, afirmam que eles nada mais são do que disfarce para uma retirada explícita. Um deles, que pediu que não fosse identificado por medo de que as críticas acabem pondo sua segurança em risco, garante que os soldados não estão fazendo nada além de se esconder em barricadas dentro dos campos. Para piorar, os militantes estão se apossando dos equipamentos deixados para trás pelas tropas ao abandonarem seus postos.

A corrupção também pode estar prolongando a guerra, de acordo com membros do governo, analistas e integrantes de agências humanitárias. No nordeste da Nigéria, o Boko Haram há muito tempo vem sendo acusado de lucrar com a pesca ilegal praticada no Lago Chade, onde a atividade é proibida, e de cobrar pedágio dos veículos que circulam ali. Agora, o Exército está sendo acusado de fazer o mesmo.

O governo aloca o equivalente a quase US$ 80 milhões a cada trimestre para a causa da guerra e, apesar disso, os soldados não têm munição suficiente e sofrem sem cuidados médicos, o que faz com que muitos se perguntem para onde está indo esse dinheiro. No início do ano, em Rann, onde não há iluminação depois que o sol se põe, os soldados, insatisfeitos por não contarem nem com óculos de visão noturna, simplesmente abandonaram seus postos, segundo vários membros da ajuda humanitária.

E os residentes garantem que outros tantos preferiram fugir a permanecer e lutar.

Abubakar, de 13 anos, conta que voltava da escola em Gubio, no fim de agosto, quando viu diversos militares correndo. "Salve-se quem puder! O Boko Haram vem vindo aí!", gritavam ao passar pela população aturdida.

O menino, que não será identificado por motivo de segurança, observou enquanto os soldados arrancavam os uniformes, trocando-os por roupas comuns. Depois, estacionaram a picape oficial sob uma árvore, amontoaram-se em um carro comum e saíram a toda.

Outra mulher, também de Gubio, que o jornal prefere não identificar, afirma que quatro soldados apavorados se uniram à família dela no esconderijo, e outros cinco fizeram o mesmo na casa do vizinho. Todos ficaram em silêncio absoluto durante dois dias, enquanto os militantes saqueavam a cidade e se gabavam em voz alta da facilidade com que se apossavam de tudo.

A maioria dos moradores e soldados fugiu durante o ataque que matou pelo menos três pessoas. Dias depois, o Boko Haram voltou para saquear um hospital e levar remédios, além de incendiar prédios governamentais e barracas militares, fugindo em veículos oficiais que foram deixados para trás.

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