O semanário francês Charlie Hebdo causou polêmica nesta semana ao publicar uma charge em que retrata o menino sírio Aylan Kurdi, morto na praia turca de Bodrum, com uma mensagem satírica dizendo que ele “fracassou a chegar à Europa” porque seria muçulmano. Ao lado dele, aparece um Jesus Cristo caricato que olha o menino afogado e diz: “Cristãos andam pelas águas”.
Depois do atentado, semanário repassou dinheiro de doações às famílias das vítimas
A publicação de charges satirizando o profeta Maomé e o Islamismo levou o Charlie Hebdo a ser vítima de uma tragédia, no início do ano, quando radicais islâmicos fuzilaram parte dos jornalistas que produziam o jornal.
Leia a matéria completaInternautas nas redes sociais se inflamaram em críticas e defesas ao jornal. Há quem viu ali um desrespeito profundo a uma criança vítima das circunstâncias de guerra e da dificuldade da União Europeia em lidar com imigrantes islâmicos. Por essa visão, não se deveria usar tragédias como escada para piadas, especialmente quando elas expusessem crianças a uma abominável condição. Por essa lógica, é inaceitável usar a morte de Aylan Kurdi como apoio para uma charge satírica atingir um fim mais nobre – criticar a condução da crise de refugiados pela França.
Há, por outro lado, quem interpretou a charge como uma crítica à Europa cristã, cuja realidade seria um “flutuar nas águas”. E por viver sem os problemas que afligem os sírios que estaria desdenhando da situação dos refugiados, cuja situação trágica teve seu retrato emblemático na foto do menino que se afogou em bote, com outras duas dezenas de pessoas enquanto tentava chegar à Grécia. Um terceiro grupo defendeu a liberdade de expressão do chargista.
Nesse cenário é importante discutir se o uso de temas de alta comoção social, como a trágica morte de Aylan Kurdi, podem ser empregados em uma charge satírica a fim de expressar uma crítica ácida e sofisticada. Há quem defenda que a charge não foi só de mau gosto, mas que esse tipo de expressão deveria ser proibida ou punida.
Artigo: A garantia do direito ao ultraje
O último dia 7 de setembro marcou oito meses do terrível ataque à redação do semanário francês Charlie Hebdo. Após o atentado, a revista se tornou um símbolo da liberdade de expressão. À época, a publicação recebeu o Prêmio PEN de Coragem na Liberdade de Expressão, quando se destacou que “[é] o papel do escritor satírico em qualquer sociedade livre.
Leia a matéria completaE é aqui que coisa se complica. Numa sociedade democrática, em que a liberdade de expressão desempenha papel fundamental, seria possível estabelecer limites ao conteúdo das expressões artísticas sem que isso se configure censura? No direito brasileiro a resposta é afirmativa.
Limitações
O entendimento corrente é que nenhum direito fundamental é absoluto e mesmo a liberdade de expressão, tão cara à democracia, deve ser restringida em hipóteses estabelecidas pela Constituição Federal (CF) e legislação ordinária. A maioria dessas hipóteses se trata de incitação e apologia ao crime (Código Penal, artigo 286 e 287), preconceito racial (princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, inscrito no artigo 1º, III, da Constituição Federal, Lei Federal nº 7.716/89), proteção do sentimento religioso em casos estabelecidos em lei (por exemplo, Código Penal, artigo 208), e, em certa medida, proteção do menor (Constituição Federal, artigo 203, Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 240, 241, 152 e 253).
Isso não quer dizer, entretanto, que no Brasil a charge publicada na contracapa do Charlie Hebdo seria proibida ou punida. Apesar do mau gosto estético evidente, a charge não se encaixa diretamente em nenhuma das hipóteses abordadas no direito brasileiro.
Estabelecer esse entendimento é vital para aprofundar a compreensão do significado da liberdade de expressão numa democracia. Facilita também o entendimento de que o respeito pela opinião do outro, pode muitas vezes ser desconfortável, mas deve ser combatido com fortes argumentos, melhores ideias e bom gosto artístico (seja lá o que for isso). Jamais com balas de fuzil, degolas ou agressões verbais desmedidas nas redes sociais.
Editorial do jornal condena xenofobia dos franceses
Como muita gente viu a charge por meio do Facebook, uma parte sensível da história da charge polêmica do Charlie Hebdo ficou oculta. Ela não foi publicada como capa do semanário, mas está entre as charges que foram rejeitadas para figurar na abertura do jornal. A escolhida para a capa retrata um europeu apoiando os pés sobre um imigrante, que diz “Vocês aqui estão em casa”. O desenho é também acompanhado da legenda “Sejam bem-vindos, imigrantes”. O editorial da publicação deixa claro que a publicação critica a xenofobia na França. “Os franceses são generosos, humanistas, de espírito aberto, mas até um certo ponto. Toda a questão é saber onde esse ponto se situa”, diz o editorial.
Em seguida, o texto lembra de uma carta de franceses de um povoado de 275 habitantes, endereçada em 1941 ao Marechal Petáin (chefe de estado francês e colaboracionista do nazismo). Eles reclamam da “verdadeira invasão na região, ocorrida por 150 judeus”, mas explicam que “se o bem superior do Estado exige de nós o sacrifício de suportá-los, nós nos resignamos, mas não sem uma incomensurável amargura”.
Pedem, entretanto, se não seria possível atenuar o “doloroso contato”, fazendo os judeus habitar em um campo separado do deles. Para o Charlie, a palavra judeus, na carta poderia hoje ser substituída por ciganos e sírios, que continuaria a fazer sentido. (RD)
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