No momento em que a revolta cresceu contra o regime de Muamar Kadafi, relatos secretos feitos por sua famosa espionagem voaram para Tripoli. Alguns eram insignificantes como os agentes que apagavam pichações contra o regime. Outros eram mais mortíferos um espião se apresentou para envenenar a comida e a bebida dos líderes dos insurgentes.
Os relatos ficaram mais desesperados à medida que a rebelião virou uma guerra civil: líderes militares nas montanhas do oeste estavam desobedecendo ordens; faltava munição às tropas na cidade de Misurata, levando os soldados a uma situação de "cada um por si".
Esses relatos e centenas de outros documentos da inteligência líbia vistos pela Associated Press em Tripoli traçam como a maré mudou nos seis meses da rebelião que acabou com os 42 anos do regime de Kadafi. Eles mostram como um regime autoritário, usando todos os meios, fracassou em esmagar uma rebelião armada e alimentada em grande parte pelo ódio às ferramentas de controle do governo.
Os documentos em árabe, lidos e fotografados por um repórter da AP durante uma visita ao quartel-general da inteligência líbia em Tripoli, contém uma mistura de dados militares e propaganda do regime. Em meio a relatos sobre os movimentos dos insurgentes, gravações de telefonemas e despachos da agenda doméstica de Kadafi, estão comunicados acusando a rede extremista Al-Qaeda de estar por trás dos rebeldes, e que 4 mil soldados dos Estados Unidos invadiriam a Líbia a partir do Egito.
Guerra civil
Os levantes começaram em meados de fevereiro, quando forças de segurança atiraram contra manifestantes na cidade de Benghazi, a maior do leste da Líbia.
Durante os seis meses de guerra, as forças de Kadafi em Tripoli dirigiram seus esforços para esmagar a rebelião. Entre os que lideravam essa tarefa estava o chefe da inteligência Abdullah al-Senoussi, cujo complexo bem fortificado em Tripoli recebia relatos de espiões no país inteiro. No começo, seu escritório lutava para compreender a situação em Benghazi, cidade de nascimento do Conselho Nacional de Transição (CNT) dos rebeldes. Um dos relatos manuscritos da inteligência, escrito por um homem que afirmava ter se infiltrado no CNT, deu os nomes de cinco integrantes, seus perfis e os hotéis que frequentavam em Benghazi. Nem uma linha do texto seria não familiar a um morador de Benghazi.
O relato termina com uma oferta para assassinar os membros do CNT. "Eu posso conduzir qualquer operação suicida. Eu também posso assassinar membros do CNT ou envenenar seus alimentos e água", está escrito. O autor não foi identificado. Nenhum membro do CNT foi morto por tropas ou espiões de Kadafi.
Viagra
Outro relatório repetiu histórias espalhadas pela mídia estatal líbia, de que os rebeldes estavam ligados à rede terrorista Al-Qaeda, de que eles não tinham apoio da população local e de que eles levavam pílulas de Viagra e preservativos para poderem estuprar mulheres. Tropas de Kadafi também foram acusadas várias vezes, e com raras provas, de estuprar mulheres sobre efeito do Viagra.
O regime líbio também levou acusações à comunidade internacional, especialmente após a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ter começado a bombardear alvos militares de Kadafi, sob a resolução 1973, a qual afirmava que era lícito atacar esses alvos para proteger civis.
Outro texto descoberto era um rascunho de carta que Kadafi escrevia ao presidente dos EUA, Barack Obama. "É necessário apoiar a Líbia para se livrar dos homens armados da Al-Qaeda, antes que todo o Norte da África caia nas mãos de bin Laden", dizia o texto. Não está claro se a carta chegou a ser enviada.
Os documentos se referem aos rebeldes como "ratos", "sabotadores", gangues armadas" e "traidores".
Os relatos também mostraram como o regime foi rápido em acreditar na própria desinformação. Em uma conversa grampeada, um homem egípcio disse que 4.000 soldados americanos estavam no Cairo, esperando para invadir a Líbia por terra.
"Quatro mil, alguns deles comandos", disse o egípcio. "É inacreditável".
Ignorância
Um relatório marcado como "secreto" da situação militar nas montanhas Nafusa colocava em evidências uma nova estratégia, enquanto culpava os comandantes por terem fracassado em seguir as instruções.
"Não prestar atenção às instruções no passado não levou ninguém a obter sucesso na luta contra as gangues armadas", dizia.
Relatórios mais tardios sugerem a ação e ameaças dentro de Tripoli, feitas por opositores do regime. Um envelope continha duas cartas escritas a mão, ameaçando matar forças de segurança na capital.
"Não teremos piedade de ninguém, não importa qual seja sua posição, e mataremos qualquer um que esteja em um posto de controle", dizia uma carta.
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