Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
oriente médio

O desespero do êxodo do último vilarejo controlado pelo Estado Islâmico

Mulheres e crianças esperam por inspeção ao fugir da última área controlada pelo Estado Islâmico no sudeste da Síria |  IVOR PRICKETT / NYT
Mulheres e crianças esperam por inspeção ao fugir da última área controlada pelo Estado Islâmico no sudeste da Síria (Foto:  IVOR PRICKETT / NYT)

Os homens que saíram da última nesga de terra controlada pelo Estado Islâmico recebem ordens de se postar atrás de duas linhas feitas com tinta spray laranja no chão rochoso do deserto; os sírios em uma, os iraquianos na outra. 

As mulheres, véus a lhes cobrir os rostos, agarradas às crianças, se posicionam em outro lugar, também separadas por nacionalidade. 

Vários desses fugitivos ficaram tão feridos na investida que tiveram de sair carregados em colchões para se render à coalizão liderada pelos EUA. 

Lá pelo meio da manhã, as Forças Especiais norte-americanas chegam em um comboio de blindados. Os homens suspeitos de ser combatentes do EI têm ordem de se aproximar em fila indiana, os braços abertos, prontos para ser revistados pelos soldados e cães farejadores. A seguir têm as impressões digitais recolhidas, são fotografados e entrevistados. 

Leia também: O Estado Islâmico está mesmo derrotado?

Já faz duas semanas que milhares de pessoas estão saindo do povoado de Baghuz, último espaço controlado pelo EI no Iraque e na Síria, onde o grupo já chegou a dominar uma área do tamanho da Grã-Bretanha. 

Pois esse domínio já não existe mais. Só no último mês, o grupo, que ainda dirigia três vilarejos, ficou só com dois e depois, um. Os militantes agora estão encurralados em pouco mais de 340 hectares. 

O cerco se fecha

A oeste, estão as forças do governo sírio; ao sul, fica a fronteira do Iraque, cujas tropas se mantêm a postos. No norte e no leste, estão sendo combatidos por uma milícia curda e árabe, com apoio norte-americano, conhecida como Forças Democráticas Sírias. 

Com o cerco se fechando, até aqueles que fazem parte dos primórdios do califado estão tentando se salvar. 

Segundo os oficiais curdos, a maioria que conseguiu chegar até esse local pertence às famílias dos combatentes, ou seja, suas diversas esposas e inúmeros filhos; poucos são os moradores locais misturados ao grupo. Sem alimento, eles não têm alternativa a não ser cozinhar uma planta que cresce nas ilhas das rodovias. 

Muitos são estrangeiros, principalmente os iraquianos que viviam sob o jugo do EI antes de fugir para esse recanto no sudeste da Síria, quando as cidades de seu país foram libertadas. Entre os que chegaram na semana passada, porém, há também alemães, franceses, britânicos, suecos e russos, prova do apelo abrangente do grupo, que atraiu cerca de 40 mil recrutas de cem países para seu Estado incipiente. 

Mustafa Bali, porta-voz das Forças Democráticas Sírias, diz que representantes do EI tinham requisitado passagem livre, mas tiveram o pedido rejeitado. "Vamos enfrentar até o último homem", afirmou.

Já os norte-americanos dizem que a circulação segura até a província síria de Idlib não está descartada; um comandante da milícia contou que o grupo estava pedindo um caminhão de suprimentos. Todos concordaram em falar sobre os detalhes mais significativos sob condição de anonimato. 

Negociar com o EI é uma situação polêmica, mas que se repetiu várias vezes durante os mais de quatro anos de batalha, principalmente para desalojar o grupo do território que chegou a ocupar no Iraque e na Síria. De acordo com as forças de segurança locais, as tratativas, incluindo trocas de prisioneiros, salvaram muitos civis e a infraestrutura de campanhas de bombardeamento que seriam catastróficas. 

Ainda que Baghuz seja o último vestígio do território do EI na região onde nasceu, o califado sempre foi um projeto global, com 16 de suas 35 "províncias" fora do Iraque e da Síria. Várias dessas "filiais" estrangeiras, inclusive, estão crescendo, principalmente nas Filipinas e na Nigéria. Três relatórios divulgados no ano passado estimam que o grupo ainda tem entre vinte e trinta mil membros só no Iraque e na Síria, onde continuam a organizar ataques.

Leia também: Cientista iraquiano conta como ajudou o Estado Islâmico a fazer armas químicas

Uma mulher que se entregou no domingo estava se rendendo pela segunda vez. Amal Mohammed al-Soussi, de 22 anos, chegou ao deserto levando os dois filhos pequenos pela mão. 

Ela contou que depois que o marido, um atirador do Estado Islâmico, foi morto durante a batalha de Raqqa, em 2017, decidiu se render à milícia e ficou detida em um acampamento durante oito meses. 

Até que, um dia, ela e outras dezenas de esposas do EI foram colocadas em caminhões e levadas para o deserto, e ali, devolvidas à organização. "Mandaram a gente sair, dizendo que aquele era nosso lugar. Então percebi que tinham feito uma troca de prisioneiros", explicou. 

Ela prosseguiu, alegando sempre ter sido engajada com o califado, mas admitindo que a fome a fez se render. Revelou que passou várias semanas comendo e alimentando as filhas com forragem. Outra mulher descreveu a busca por uma planta que dá entre as casas e perto das estradas, que fervia e se forçava a engolir. 

O perigo cada vez maior a que os próprios familiares dos integrantes do EI estavam sujeitos ficou evidente no número de pessoas que todo dia apareciam feridas. 

Uma mulher com a perna despedaçada por estilhaços chegou de caminhão, mas foi erguida, tendo de ir aos pulos para o local onde as outras aguardavam para ser revistadas. Um homem idoso desabou no colchão devido a uma lesão nas costas. Uma mulher de vinte e poucos anos conseguiu chegar ao posto de checagem, mas morreu logo em seguida. Sua família pouco pôde fazer, a não ser cobri-la com um cobertor.

Leia também: O extremista que filmou a própria morte na Síria

Naquela tarde, os soldados das forças de segurança cavaram uma sepultura para a jovem no espaço rochoso um pouco além do local de identificação. 

Havia apenas uma pessoa de sua família: um primo. Ele ajudou a enterrá-la, descobrindo sua face apenas para voltá-la para Meca. Os homens que abriram a cova ergueram as mãos para o céu, em uma oração de cinco segundos. 

Ao lado do túmulo recém-aberto havia outros três, sendo que um deles não tinha nem um metro de comprimento, marcando o local de descanso eterno daqueles que, como outros tantos, não sobreviveram ao califado. 

The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros