Protesto no ano passado em Sarajevo contra movimentos separatistas.| Foto: EFE/Nedim Hasic
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Entrar na OTAN como questão de sobrevivência não é um dilema exclusivamente ucraniano. Desde fevereiro do ano passado, os cidadãos da Bósnia-Herzegovina acompanham atentos os desfechos da invasão russa na Ucrânia, temendo que Vladimir Putin vire sua atenção para os Bálcãs e arme líderes sérvios, seus aliados históricos, para uma nova empreitada de anexação territorial.

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O clima de tensão estimulou uma corrida das autoridades locais para se adequarem militar e politicamente às exigências da Organização do Tratado do Atlântico Norte e formalizarem a entrada no grupo o mais rápido possível, apostando que a próxima Cúpula da OTAN, agendada para ocorrer em julho na Lituânia, poderá avançar nesta questão.

A Bósnia corre com um plano de reformas para adesão desde 2010, mas, desde então, vinha enfrentando uma série de entraves que a deixou, junto ao Kosovo, como as únicas nações dos Bálcãs fora da organização, além da Sérvia, que considera a OTAN uma "inimiga" desde os anos 1990.

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Tentando correr contra o tempo, na semana passada, o secretário-geral adjunto para Inteligência e Segurança da OTAN, David Cattler, visitou a capital Sarajevo e encontrou-se com o ministro da Defesa da Bósnia-Herzegovina, Zukan Helez, na esteira de um anúncio de um pacote de ajuda da organização para reforçar as capacidades defensivas da Bósnia e sua interoperabilidade com os demais países que integram o pacto. O pacote soma-se ao orçamento do Estado para 2023, que pela primeira vez prevê um aumento da despesa com a defesa, valor que ronda os 45 milhões de euros (equivalente a R$ 249 milhões na cotação atual).

“Nosso país permanece na mira dos nacionalistas sérvios, apoiados pela Rússia, e de suas maquinações expansionistas. Enquanto Moscou avança seu 'mundo russo' através da anexação de cidades inteiras na Ucrânia, em Belgrado, eles promovem o chamado 'mundo sérvio', a ser esculpido nos territórios soberanos dos Estados vizinhos, incluindo a Bósnia”, escreveu um dos presidentes do país (entenda o sistema político da Bósnia abaixo), Denis Bećirović, em um recente artigo defendendo a entrada da Bósnia na OTAN. “A Sérvia forneceu porto seguro aos mercenários do Grupo Wagner, tem laços duvidosos — e antidemocráticos — com agentes da inteligência russa e recebeu bilhões em armas russas e chinesas. Ao mesmo tempo, patrocina ativamente grupos secessionistas na Bósnia”, acusou o político.

Em janeiro, Bećirović viajou pessoalmente para a sede da OTAN em Bruxelas para apelar ao secretário-geral Jens Stoltenberg e ao presidente do Comitê Militar, Rob Bauer, que acelerassem o processo. A costa bósnia, com cerca de 20 quilômetros, é o único território que não faz parte da OTAN com saída para o Mar Adriático.

As intensas movimentações das autoridades bósnias não passaram despercebidas por Moscou. Em fevereiro, o embaixador da Rússia na Bósnia-Herzegovina, Igor Kalabukhov, publicou em sua página no Facebook uma mensagem na qual dizia que a Bósnia é "livre para dar qualquer passo no cenário global e ingressar em qualquer organização", porém, escolher entrar em um bloco "cujo objetivo principal é a destruição da Rússia" legitimaria o "direito de defesa" do Kremlin. "É uma escolha livre, mas, por favor, não limite nosso próprio direito de responder. Proporcionalmente, é claro. Enquanto não tivermos 100% de certeza sobre a veracidade de planos vis para a destruição do nosso país, ninguém apertará o botão vermelho", escreveu o embaixador.

A capital Sarajevo foi palco do cerco militar mais longo da história moderna, ficando sitiada de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996.| Foto: EFE/Velija Hasanbegovic
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Separatismo e genocídio

Não são apenas os padrões militares que afastam a Bósnia da OTAN; para entrar no pacto, o país terá que enfrentar sua própria história e um sistema político considerado o mais complexo do mundo. Isso envolve três co-presidentes com poder de veto cada, 14 parlamentos, mais de 130 ministros e pelo menos 70 partidos políticos, todos divididos entre duas entidades federativas governadas por grupos étnicos opostos e ainda submetidos a um interventor de paz nomeado pela comunidade internacional.

Desde 1995, o país vive neste sistema forjado por meio de um tratado de paz (Acordo de Dayton) que colocou fim a uma guerra civil que opôs três grupos étnicos: os bósnios-sérvios, parte da comunidade ortodoxa, os bósnios-croatas cristãos e os chamados bosníacos, classificados em sua maioria como muçulmanos e vítimas de genocídio no conflito que vitimou 200 mil pessoas.

Como herança da guerra, o país que era parte da ex-Iugoslávia foi dividido em duas entidades federais. No lado da capital Sarajevo vivem os bosníacos e famílias croatas, enquanto os bósnios-sérvios ficaram com a porção leste do país, conhecida como República Srpska, na divisa com a Sérvia. Cada grupo elege um presidente e juntos governam o país simultaneamente. No entanto, enquanto 69% dos bosníacos e 77% dos croatas apoiam a adesão à OTAN, a República Srpska, representada por seu principal líder político moderno, o separatista Milorad Dodik, se opõe fielmente a esta filiação, defendendo que o país seja “neutro militarmente”.

"Durante anos, Dodik cultivou laços estreitos com Moscou. Ele apoiou a invasão da Ucrânia pela Rússia e visitou o presidente Vladimir Putin duas vezes no ano passado. Dodik se posicionou como o aliado mais leal do presidente russo nesta parte da Europa. No início de janeiro, o líder sérvio-bósnio também concedeu a Putin a mais alta medalha de honra da República Srpska. Este foi um golpe direto no olho do Ocidente”, explica o professor associado da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Sarajevo, Hamza Karcic, em um artigo publicado na revista Foreign Policy.

“Segundo o último censo realizado em 2013, os bosníacos representavam 50,1% da população. Embora os sérvios e croatas étnicos tenham Estados parentes, vizinhos como a Sérvia e a Croácia, esse não é o caso dos bosníacos. Eles não têm uma pátria alternativa ou um plano B. Para os bósnios, fortalecer as instituições do país e ingressar na OTAN é crucial para garantir sua segurança”, argumenta o professor.

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As declarações de Dodik e de políticos de seu partido motivaram reações das potências ocidentais. No ano passado, o Reino Unido impôs sanções individuais, envolvendo congelamentos de ativos e proibições de viagens. A então secretária de Relações Exteriores britânica, a ex-premiê Liz Truss, publicou um comunicado afirmando que a invasão da Ucrânia pelo presidente russo Vladimir Putin encorajou Dodik a corroer ainda mais o complexo equilíbrio nos Bálcãs. “Esses políticos estão minando deliberadamente a paz duramente conquistada na Bósnia-Herzegovina”, disse Truss. “Incentivado por Putin, seu comportamento imprudente ameaça a estabilidade e a segurança nos Bálcãs Ocidentais.”

No mês passado, a embaixada americana na Bósnia também emitiu um alerta sobre as tentativas dos líderes bósnios-sérvios de atravancarem as reformas militares no país, reforçando que Dodik não tem autoridade para suspender ou alterar unilateralmente a parceria e cooperação sólida do país com a OTAN.

"Sarajevo fica a uma hora de voo de Viena e, no início dos anos 1990, centenas de milhares de refugiados bósnios se dirigiram para a Europa Ocidental. Investir na segurança da Bósnia é um investimento direto na segurança da Europa”, defende o professor Karcic. “A mensagem para os Estados Unidos e seus aliados é clara: admitam a Bósnia na OTAN antes que seja tarde demais".