Janat Bebe enviou um filho e dois netos à Polícia Nacional Afegã para combater o Talibã; os três voltaram para casa, no ano passado, em caixões, para ser enterrados no cemitério bem acima da aldeia onde moravam, de casinhas de pedra e argila. Shemal tem apenas três mil habitantes, mas perdeu quase 60 policiais e soldados em combate, arrasando e empobrecendo o vilarejo.
"Eles não tinham escolha a não ser se alistar; não há outros meios de ganhar a vida por aqui", comenta Bebe a respeito dos familiares. Pois os três deixaram 17 filhos no total, que agora ela tem de alimentar, vestir e educar.
A guerra do Afeganistão está matando a uma proporção assustadora: o presidente Ashraf Ghani anunciou, em janeiro, que 45 mil soldados e policiais já morreram em combate desde o fim de 2014. De uns meses para cá, a proporção passou a ser de 30 a 40 mortes por dia, ritmo que um comandante norte-americano descreveu ao Congresso como "insustentável".
Em um país que está em guerra há 40 anos, cada morte é um novo golpe nas famílias e comunidades que já sofrem demais. Essa é uma das razões para o interesse renovado nas tratativas de paz entre os EUA e o Talibã que, para alguns, aumentam as esperanças de um fim para o conflito, ou pelo menos um interlúdio, uma trégua. Representantes do movimento estão reunidos com negociadores norte-americanos no Catar, mas gente como Bebe e Shen Gul, de 70 anos, que perdeu dois filhos, policiais, em emboscadas dos fundamentalistas no norte do país, temem o que a paz pode trazer.
Eles receiam principalmente que um acordo coloque o Talibã novamente no governo, ou seja, leve um inimigo odiado de suas famílias de volta ao poder. E há também o receio de que um armistício possa levar a represálias contra os parentes que continuam nas forças de segurança – ou acabe com seus empregos e os salários, que se tornaram tão importantes para a vida familiar. "Se dissolverem o exército, o Talibã pode matá-los", afirma Gul, referindo-se aos cinco filhos que servem a instituição.
Leia também: China envia soldados para fronteira do Afeganistão enquanto EUA consideram sair do país
Muitos dizem que se inscreveram por patriotismo e pelo senso de dever nacional, mas o fato é que seus salários sustentam famílias enormes e, como no caso de Shemal, a economia de povoados inteiros.
"Dependemos totalmente do salário deles; sem esse dinheiro, não temos nada", admite Malik Ajmer Khan, de 53 anos, um dos anciões do vilarejo, cujo filho é um dos 300 homens locais que fazem parte das forças de segurança.
E ele prossegue, explicando que a pequena comunidade não consegue sobreviver somente com as safras de trigo e milho, ou com os cabritos que se espalham pelas veredas montanhosas que levam à aldeia. Acessível por carro e um pedaço só a pé, através das trilhas lamacentas sob as montanhas nevadas do leste do país, Shemal é tão isolada que Khan garante que muitos moradores nunca nem foram a Jalalabad, a cidade mais próxima, ou a qualquer outra.
Emboscadas talibãs
Bebe conta que teve de vender a casa depois que o filho e os netos foram mortos em uma emboscada talibã no posto onde trabalhavam, em Zabul, há um ano. Seu marido morreu combatendo os soviéticos nos anos 80 – e, segundo a tradição afegã, ela agora é a chefe do clã que inclui as três viúvas recentes.
Cercada pelos netos e bisnetos, Bebe calçava um tênis rosa e vestia uma túnica presa por um grampo de plástico. No colo, a caçula da família, Gulab, cujo nome significa "rosas". Ela nasceu depois da morte do pai. "Sempre tive medo de perder outro homem da família, mas nunca imaginei que iriam os três de uma vez", lamenta.
O número de baixas é maior entre os policiais, que se veem frequentemente em combate, mas não usam armamento pesado como os militares. Geralmente representam a última linha de defesa em núcleos rurais pequenos, vulneráveis ao "atropelo" do Talibã, que chegou a promover 1.700 atentados insurgentes por mês, no país todo, no fim do ano passado.
Apesar do aumento drástico no número de baixas, ambas as profissões são muito valorizadas; de fato, selecionadores nas províncias onde vivem Bebe e Gul recebem mais interessados do que têm condições de assimilar.
Leia também: No Afeganistão, um presídio lotado de crianças, todas ligadas a atentados a bomba
Farid Khan, porta-voz da polícia em Nangarhar, província que inclui Shemal, informa que centenas de recrutas estão aguardando a vez de entrar para os pelotões, que se mantêm na capacidade máxima, justamente por causa do número de voluntários.
No exército, o alistamento na província de Kunduz dobrou desde o ano passado, ficando em uma média de 300 a 400 por mês, segundo o coronel Abdul Qadier, responsável pela seleção regional. "Com a crise econômica no Irã, os afegãos pararam de procurar emprego lá e passaram a se alistar no exército. Não há outras oportunidades", confessa.
No geral, ainda há problemas com a contagem inflada de pessoal, tanto na polícia como no exército; aliás, oficiais deste segundo querem acabar com a prestação de informações erradas por parte dos comandantes, que muitas vezes criam "soldados fantasmas" em suas unidades para arrecadar seus salários. O índice de mortalidade horrorosamente alto e o problema contínuo das deserções, do qual pouco se fala, criam uma dificuldade constante de treinamento de novos recrutas, feita a toque de caixa.
De acordo com o relatório divulgado em fevereiro pelo Inspetor Especial para a Reconstrução do Afeganistão, as forças de segurança perderam quase quatro mil homens no ano passado, o menor número desde janeiro de 2015.
Leia também: O herói que restaura braços, pernas e a dignidade em um país arrasado pela guerra
O policial entra ganhando o equivalente a US$ 155 mensais, como informa o Ministério do Interior afegão. O filho de Bebe, Mahmood Jan, e um dos netos, Gulab, já tinham dez anos de casa; o outro neto, Sekander, três. Bebe revela sua revolta com os militantes que mataram os homens de sua família. "Ah, se eu fosse mais nova... entrava para o exército só para vingar a morte do meu filho e dos meus netos", afirma.
E toca o ombro do neto mais velho, Suleiman, um garoto esguio que aparenta ter uns doze anos. "Já pedi a ele que, quando ficar mais velho, entre para o exército e revide o que fizeram à nossa família."
Suleiman é questionado sobre seus planos de se alistar; além de Bebe, vários homens e meninos se reúnem à sua volta para ouvir a resposta. "Sim. Quero servir o país para podermos ganhar a guerra", diz o garoto, a voz sumida, olhando para a avó. Ela parece querer que ele continue falando. "Porque também me inspiro nos homens da minha família."
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink
Deixe sua opinião