O aroma de frango frito e biscoitos despertou meu apetite enquanto os sons country de Alison Krauss, Alan Jackson e Johnny Cash tocavam nos alto-falantes.
Esta poderia ter sido uma feira municipal onde eu nasci no Tennessee, mas não era. Eu estava em um cemitério no interior do Brasil, na “Festa Confederada” - uma festa anual do patrimônio sulista dos EUA, realizada todo mês de abril em Santa Bárbara d'Oeste, no estado de São Paulo.
Uma placa explicando “O que a bandeira confederada realmente significa” em inglês e português cumprimentava os cerca de 2.500 visitantes - a maioria deles brancos - na entrada do Cemitério Americano. No interior, as mulheres que usavam saiotes estilo Antebellum dançavam ao estilo “square dance” com homens vestidos de uniformes confederados cinzentos. Casais de camisetas estavam dançando o two-step texano.
Nos arredores do cemitério havia ativistas negros protestando contra a festa do dia 28 de abril com placas e faixas dizendo: "Abaixo a bandeira confederada".
Como um debate americano sobre o racismo chegou ao Brasil? Essa é uma questão emaranhada que eu estou desvendando na minha pesquisa de dissertação sobre a história e o significado dos símbolos da Confederação no Brasil.
A Confederação chega ao Brasil
O Brasil tem um longo e estranho relacionamento com a Confederação dos Estados Unidos.
Depois que a Guerra Civil terminou em 1865, acabando com a escravidão nos Estados Unidos, cerca de 8.000 a 10.000 soldados do sul e suas famílias deixaram a Confederação vencida e foram para o Brasil.
Lá, a escravidão ainda era legal. Aproximadamente 40% dos quase 11 milhões de africanos trazidos à força pelo Atlântico entre 1517 e 1867 foram trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar no Brasil. Este foi o último país do hemisfério ocidental a abolir formalmente a escravidão, em 1888 - 23 anos depois dos Estados Unidos.
A escravidão legal pode ter sido um atrativo para os soldados confederados que migraram para o Brasil após a abolição.
O economista político brasileiro Célio Antonio Alcântara Silva analisou cartas enviadas a consulados e vice-consulados brasileiros nos Estados Unidos no final da Guerra Civil e descobriu que 74% dos sulistas que perguntavam sobre a emigração eram proprietários de escravos.
Naquela época, 25% dos lares brancos do sul possuíam escravos. Isso significa que as pessoas interessadas em se mudar para o Brasil na década de 1860 representavam desproporcionalmente uma fatia relativamente pequena de possuidores de escravos da população livre do sul.
Como o número exato de famílias confederadas que migraram para o Brasil é desconhecido, é impossível afirmar com certeza quantos ingressaram novamente ao tráfico de escravos na chegada. A pesquisa de Silva encontra registros de 54 famílias confederadas que compraram, no total, 536 africanos escravizados no Brasil.
A historiadora brasileira Luciana da Cruz Brito também encontrou evidências nos jornais Confederados de 150 anos de idade nos quais ela descobriu que a escravidão atraiu sulistas brancos para o Brasil.
Em um deles, um norte-americano chamado Charles Gunter escreveu sobre seu desejo de comprar escravos no Brasil a um preço mais baixo do que nos Estados Unidos. Outro confederado, James Gaston, expressou desapontamento por não trazer afro-americanos recém-libertados para o Brasil.
Experiência Rural
Apesar desses registros históricos, muitos descendentes dos Confederados contestam que a escravidão trouxe seus antepassados para o Brasil.
Já na década de 1860, o Brasil estava recrutando ativamente proprietários de plantações do sul dos Estados Unidos, parte de uma política de imigração destinada a atrair europeus, europeus-americanos e outros migrantes "brancos". Segundo os historiadores Cyrus e James Dawsey, que nasceram e cresceram perto de comunidades confederadas em São Paulo, o imperador brasileiro Dom Pedro II também prometeu terras baratas a qualquer agricultor americano que viesse com um arado - uma tecnologia que o Brasil carecia.
De qualquer maneira, milhares de sulistas brancos fizeram do Brasil seu novo lar, depois da Guerra Civil. No estado de São Paulo, eles estabeleceram uma comunidade um tanto fechada e culturalmente homogênea que manteve suas tradições do sul por gerações.
Os confederados do Brasil continuaram a falar inglês e a praticar suas crenças batistas, metodistas e presbiterianas, introduzindo o protestantismo no país católico.
Até hoje, muitos descendentes dos confederados ainda descrevem a Guerra Civil como a “Guerra da Secessão” - um dos nomes sulistas originais.
E, desde 1986, no Cemitério Americano, onde seus ancestrais foram enterrados (como protestantes, foram impedidos de serem sepultados ao lado de católicos) a Fraternidade Descendência Americana tem realizado uma celebração anual discreta de sua herança sulista.
Racismo e o legado de Charlottesville no Brasil
Por três décadas, a Festa Confederada do Brasil foi relativamente incontroversa.
Isso mudou depois dos eventos em Charlottesville, Virgínia, em agosto de 2017, quando a manifestante anti-racista Heather Heyer foi assassinada por um supremacista branco na marcha “Unite the Right”, protestando contra a remoção planejada de uma estátua do general confederado Robert E. Lee.
O racismo é um problema social persistente no Brasil multicultural, onde cerca de metade da população tem ascendência africana. Os brasileiros brancos, em média, ganham o dobro dos negros, e dois terços de todos os prisioneiros são negros.
Esforços desde 2010 para estabelecer cotas raciais para admissões em universidades e empregos no governo têm sido polêmicos. Em um país onde as pessoas usam dezenas de categorias para identificar sua raça, as alegações de fraude e as perguntas sobre quem é ou não é "negro" contaminaram o sistema de ação afirmativa.
Um mês depois da violência em Charlottesville, ativistas negros em São Paulo organizaram um debate público com a Fraternidade Descendência Americana, que organiza a Festa Confederada anual. Os ativistas queriam discutir a adoção dos símbolos confederados pela fraternidade.
“Vocês podem deixar a bandeira”, disse a professora Claúdia Monteiro da UNEGRO, uma organização que faz parte do Movimento Nacional Unificado Negro do Brasil. “O negro não. O estigma [que ela representa] está na cor da nossa pele. ”
A Fraternidade Descendência Americana insiste que seu grupo não representa o racismo. Em um boletim de 2018, a organização declarou que “não fará qualquer discriminação de raça, gênero, cor, idade, religião, ou de qualquer outra forma.”
Marcelo Dodson, ex-presidente da Fraternidade Descendência Americana, disse no debate de 2017 que a Guerra Civil foi uma batalha não pela escravidão, mas pelo governo pequeno, impostos baixos, comércio livre e direitos dos estados - uma posição que muitos defensores americanos da “causa perdida” da Confederação também mantêm.
A cultura confederada vive
O diálogo de 2017 entre ativistas negros e confederados, que foi filmado e postado no YouTube, não resolveu seu desacordo.
No ano passado, os visitantes da Festa Confederada foram recebidos por manifestantes que diziam que a bandeira confederada era um símbolo de opressão.
Este ano, ativistas negros ficaram ao lado do cemitério de Santa Bárbara d'Oeste para transmitirem a mesma mensagem, dizendo que "muito sangue" foi derramado sob os auspícios da bandeira confederada. Eles também tocaram instrumentos de percussão e praticaram a capoeira, uma dança afro-brasileira e uma forma de arte marcial, em uma exibição das profundas raízes africanas do Brasil.
Uma semana depois da Festa Confederado, pelo menos 100 grupos da sociedade civil de todo o país assinaram um manifesto criticando o uso do evento de “símbolos que elevam a supremacia branca” - um sinal da crescente consciência brasileira sobre a complicada e controversa história da Confederação Americana.
*Jordan Brasher é doutorando em Geografia na Universidade do Tennessee e membro da American Association of Geographers