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Ele foi um dos principais aliados de Daniel Ortega, o líder sandinista que governa a Nicarágua desde 2007, e agora é mais um daqueles que foram declarados pelo ditador esquerdista como “traidor da pátria”.
Rafael Solís Cerda, um ex-juiz que atualmente vive na Costa Rica, após romper com o regime de Ortega em janeiro de 2019, denunciando o “estado de terror” que o ditador sandinista impôs à população, que foi às ruas em 2018 contra o seu governo, agora enfrenta o ônus de ser considerado um opositor daquele que um dia foi seu amigo.
O ex-juiz, que também foi guerrilheiro, deputado e embaixador, se tornou nos últimos anos um dos opositores mais emblemáticos de Ortega e sua esposa, Rosario Murillo. Após ser declarado pelo ditador sandinista como um “traidor da pátria”, ele perdeu sua nacionalidade e teve quase todos os seus bens que estavam no país confiscados pelo regime.
Recentemente, a mídia independente da Nicarágua denunciou que a polícia de Ortega tinha expulsado sua mãe, Rafaela Cerda, de 93 anos, da casa onde ela morava. Testemunhas do ato falaram de forma anônima que a idosa não pôde levar nem sequer os seus medicamentos e teve que sair do local somente com a roupa do corpo. As autoridades da ditadura sandinista também confiscaram casas e prédios de outros membros de sua família, em uma tentativa de intimidar ainda mais o ex-juiz.
Antes de se “rebelar” contra Ortega, Cerda foi um aliado fiel ao ditador. Enquanto estava na Corte Suprema de Justiça da Nicarágua, a mais alta instância judicial do país, ele era considerado como o braço direito do ditador no Poder Judiciário. O ex-juiz também esteve envolvido na sentença que eliminou em 2009 os limites da reeleição presidencial na Nicarágua e foi padrinho do casamento de Ortega com Murillo em 2005.
Cerda nasceu em 25 de julho de 1953 em Manágua, capital da Nicarágua. Ele vem de uma família católica que possuía muitos bens na capital. Atualmente, a maior parte dos bens de sua família já foram confiscados por Ortega.
O ex-juiz é formado em direito pela Universidade Centro-americana (UCA), que no ano passado foi confiscada por Ortega e transformada em um centro de doutrinação.
Sua jornada com os sandinistas começou na década de 1970, quando ele se juntou à guerrilha do Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), combatendo em Manágua as forças de Anastasio Somoza Debayle. Foi nessa época que ele conheceu e se aproximou de Ortega, que era um dos comandantes da revolução.
Após a vitória dos sandinistas, Cerda ingressou no Exército Popular Sandinista (EPS) e, pouco tempo depois disso, foi nomeado pela Junta de Governo de Reconstrução Nacional como embaixador da Nicarágua nos Estados Unidos.
Com o passar do tempo, Cerda retornou ao seu país natal, onde se candidatou ao cargo de deputado pelo FSLN. Sua campanha foi bem sucedida e ele foi eleito para o parlamento nicaraguense. Cerda foi primeiro secretário da Assembleia Nacional de 1985 a 1990, período em que a atual Constituição da Nicarágua foi aprovada pelo parlamento.
Em 1990, ele foi reeleito deputado na Assembleia Nacional. Em 2000, foi nomeado magistrado da Corte Suprema de Justiça, cargo que ocuparia até 2019. Nesse período, ele se destacou por sua lealdade a Ortega, que voltou à presidência em 2007, após vencer as eleições.
Foi Cerda quem redigiu a sentença da Sala Constitucional da Corte Suprema, em 2009, que declarou inaplicável o artigo 147 da Constituição que proibia a reeleição consecutiva e limitava o número de mandatos presidenciais a dois. Essa decisão abriu o caminho para que Ortega se candidatasse novamente em 2011, onde venceu e se perpetuou no poder.
Considerado como um dos homens mais poderosos e influentes do sandinismo, Cerda também era um amigo pessoal de Ortega e Murillo, por isso foi padrinho de casamento deles. Ele participava de eventos e cerimônias oficiais ao lado do casal presidencial, e era visto como um defensor dos interesses da família Ortega-Murillo no Poder Judiciário.
“Estou aqui na [Suprema] Corte para defender os interesses da Frente Sandinista”, dizia ele.
A relação de “confiança e cumplicidade” entre Cerda e Ortega se rompeu em 2019, quando o ex-juiz surpreendeu o país e renunciou à Corte Suprema e às suas funções no FSLN. O ato ocorreu em meio à crise política e social que havia se iniciado em 2018, com os protestos realizados contra Ortega.
Exilando-se na Costa Rica, o ex-amigo do ditador sandinista divulgou uma carta onde acusava seu ex-chefe de impor um “estado de terror” no país, de inventar “acusações absurdas” contra os manifestantes, de usar a força irracionalmente contra a população, de instalar e consolidar uma “ditadura com características de monarquia absoluta” e de levar o país a uma “guerra civil”.
Naquele momento Cerda disse que “não era um covarde nem um traidor”, mas que “agia por consciência e por princípios”, afirmando que não houve tentativa de golpe de Estado no país nem agressão externa, como alegava Ortega, mas sim uma “rebelião popular legítima contra um governo que perdeu a razão, o direito e o respaldo da maioria do povo”.
O ex-juíz também expressou seu arrependimento pela sentença que havia ajudado a validar em 2009, aquela que possibilitou a reeleição de Ortega, dizendo que “nunca imaginou que a história se repetiria” no país por culpa de quem também “lutou contra a ditadura de Somoza”.
“Acho que nunca mais, nunca mais deveria haver reeleição na Nicarágua”, disse Cerda em 2021, durante uma entrevista onde demonstrou claramente seu arrependimento. Naquele ano, ele esperava que a oposição vencesse as eleições e restaurasse o artigo constitucional que impedia a reeleição e limitava os mandatos, no entanto, a perseguição de Ortega contra opositores já estava tão intensa que eles nem ao menos tiveram a chance de disputar aquele pleito.
A renúncia de Cerda causou um forte impacto na cúpula do sandinismo, que viu um de seus pilares se desmoronar. Ortega reagiu com fúria e vingança, chamando o ex-juiz de “traidor”.
O ditador decidiu oficializar sua fala ao declarar Cerda como um “traidor da pátria” e retirar seus direitos como cidadão nicaraguense. Uma ação interessante foi que, ao expulsar oficialmente Cerda de suas funções públicas, Ortega não permitiu que todas as ações julgadas pelo ex-juiz fossem derrubadas de forma retroativa, justamente porque ele estava envolvido na decisão de 2009.
Da Costa Rica, onde vive asilado, Cerda continua denunciando as violações de direitos humanos cometidas pelo regime de Ortega, que reprime com violência as manifestações, persegue opositores e padres e fecha organizações independentes.
Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), a crise na Nicarágua já deixou mais de 300 mortos e 500 presos políticos, além de jornalistas, ativistas e defensores dos direitos humanos perseguidos, exilados ou silenciados.