A surpreendente vitória eleitoral de Donald Trump em 2016 rendeu uma série de tentativas de explicação. Racismo. Sexismo. Divisões de classe. Rússia. Traição.
Pode ser que todas (ou nenhuma) dessas hipóteses sejam verdadeiras. No entanto, um importante fator passou despercebido: o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria.
Embora esses eventos tenham ocorrido há três décadas, pesquisadores que ignoram o impacto de tais episódios no momento político atual deixam de lado a peça central da história sobre como os EUA chegaram onde estão hoje e, portanto, oferecem uma visão incompleta em relação à formação da coalizão de Trump.
Desde seus primeiros dias, a política americana foi definida por uma forte desconfiança em relação ao governo federal – sentimento que produziu os frágeis Artigos da Confederação e, em seguida, críticas ao seu sucessor mais forte. Em 1788, o político Luther Martin (1748 – 1826), que morou e trabalhou no estado de Maryland, discursou a muitos contra o antifederalismo em sua condenação à Convenção de Filadélfia, a qual acusou de dar ao governo federal "poderes sem limites", que ameaçavam "a destruição dos governos estaduais e a introdução da monarquia".
Enquanto os antifederalistas perdiam, o temor de um poderoso governo federal que violasse os direitos individuais continuou sendo a força motriz da política americana por gerações. “O povo reina no mundo político americano como Deus reina no Universo. Ele [o povo] é a causa e o fim de todas as coisas: tudo sai dele e tudo termina nele”, escreveu Alexis de Tocqueville em “A democracia na América” (1835).
A Guerra Fria, no entanto, desafiou essa tradição hostil em direção ao poder centralizado. Ao contrário da rápida ascensão e queda do estado federal que ocorrera durante guerras americanas anteriores, a Segunda Guerra Mundial legou à nação outro conflito que duraria meio século e que, com o surgimento de armas nucleares e a disseminação de uma ideologia política hostil, pareceu muito ameaçador para o povo americano.
A eclosão da Guerra da Coreia, em 1950, convenceu muitos americanos, de dentro e fora do governo, de que o comunismo estava em ascensão e apresentava um perigo tão grande para os Estados Unidos que era necessário aumentar o poder federal. Dessa forma, os gastos do governo foram exorbitantes durante a Guerra da Coreia, mas, ao contrário dos conflitos anteriores, permaneceram na trajetória ascendente, quase dobrando nos 15 anos seguintes. Até mesmo muitos conservadores estavam dispostos a aceitar essa nova condição, se necessário. Tão grande foi o sentimento de ameaça que logo após o fim da guerra, em 1953, alguns assessores do então presidente americano Dwight D. Eisenhower (1953 – 1961) alertaram que a Guerra Fria poderia impor restrições às liberdades americanas básicas e, consequentemente, poderiam mudar o modo de vida da nação. Mesmo assim, eles estavam "preparados para uma mobilização total e controle se isso fosse necessário para manter a segurança nacional".
Essa ameaça fez com que os americanos continuassem a concordar com o aumento da expansão do governo federal durante os anos da Guerra Fria, pois muitos passaram a vê-lo não apenas como um mal necessário, mas, às vezes, até como algo positivo. O temor entre o povo americano de que um governo poderoso iria, inevitavelmente, privá-lo de direitos individuais foi substituído por uma sensação de que ele era necessário para defender suas liberdades fundamentais. A partir dessa mudança de perspectiva, os dois, governo e povo, construíram vínculos um tanto artificiais, implícitos em grande parte das próximas décadas da expansão da política federal.
Em 1964, 77% dos americanos disseram que confiavam no governo federal totalmente ou durante a maior parte do tempo. Em 1972, o então presidente norte-americano Richard M. Nixon, que criou a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional e a Agência de Proteção Ambiental, impôs controles de preços e salários e propôs um programa de renda mínima garantido pelo governo federal, foi reeleito com quase 61% dos votos populares, com questões de política internacional no centro de sua vitória. Embora poucos americanos aprenderam a amar um governo federal expansionista, pelo menos aprenderam a viver com ele, especialmente quando isso significava ‘manter o comunismo à distância’.
Antipatia reprimida
Esse sentimento, no entanto, começou a diminuir na década de 1970, em grande parte após a Guerra do Vietnã e o escândalo político de Watergate, que trouxe à tona, novamente, muitos dos motivos pelos quais os americanos haviam desconfiado do governo por tanto tempo. Em 1980, Ronald Reagan usou esse sentimento de temor como estratégia para vencer as eleições americanas, declarando que "as nove palavras mais terríveis da língua inglesa são: 'Eu sou do governo e estou aqui para ajudar'". O colapso da União Soviética derrubou a última restrição ao sentimento de um governo antifederalista. De repente, o governo não era mais necessário para defender os interesses nacionais contra a ameaça comunista e, talvez, não fosse mais necessário para qualquer outra coisa.
Anos de antipatia reprimida em relação ao governo e autoridades explodiram. Os conservadores, alguns dos quais tinham aceitado de má vontade a expansão do governo federal e outros que haviam sido marginalizados, agora procuravam consertar e aproveitar as oportunidades políticas lançando ataques contra os programas federais e aos burocratas que os supervisionavam.
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Décadas antes da presidência de Trump, os congressistas republicanos liderados por Newt Gingrich elevaram o teto da dívida, opuseram-se a fornecer fundos federais a menos que fossem compensados por cortes nos gastos federais, lançaram ataques pessoais e partidários contra líderes democratas que haviam danificado o processo legislativo e forçaram um shutdown do governo federal. Muitos acreditavam que o fim da Guerra Fria havia os livrado da ameaça da grande tirania do governo, e era hora de desfazer o dano que havia sido feito.
"A Queda do Muro de Berlim simboliza uma mudança memorável na forma como as pessoas vivem. Mais importante, liberta a maneira como as pessoas pensam. Vemos com clareza que as burocracias governamentais centralizadas criadas neste século não são a onda do futuro. As pessoas não confiarão mais em planejadores e burocratas mais do que em si mesmos", declarou o Partido Republicano em 1992. Embora o democrata Bill Clinton tenha vencido a eleição, ele também reconheceu a mudança de visão que se desenrolava à sua volta, pois 60% do país achava que o governo estava tentando fazer "muitas coisas que deveriam ser delegadas a indivíduos e empresas”, enquanto 32% eram favoráveis a um maior envolvimento do governo. "A era do grande governo acabou", anunciou Clinton.
Trumpismo
Ninguém, no entanto, incorporou esse sentimento antigoverno tanto quanto Trump. Definindo a si mesmo como sozinho no combate à causa, ele condenou os programas e funcionários federais com uma agressividade quase sem precedentes.
Trump também foi muito além, atacando as normas políticas básicas e pressupostos que definiram grande parte da América do século XX. Ele não apenas criticou Hillary Clinton; ele pediu por sua prisão. Ele não apenas discordou de seus críticos na mídia; ele os rotulou como inimigos do povo. Ele rejeitou os padrões tradicionais aos quais os candidatos presidenciais haviam aderido anteriormente, recusando-se a divulgar suas declarações de impostos, a se desfazer de seu império financeiro e até mesmo se recusou a aceitar a derrota caso isso acontecesse.
Cinquenta anos antes, tais táticas provavelmente teriam assustado uma população americana que aceitou a ação do governo como necessária e, às vezes, até bem-vinda. Em 2016, porém, eles ressoaram com uma nação cuja confiança no governo para "fazer o que é certo" caiu para 18%. Sem as realidades da Guerra Fria para reforçar o sentimento pró-governo, a nação aderiu a um novo consenso de hostilidade em relação ao governo e seus representantes.
Esse sentimento esteve, em grande parte, inativo desde a Segunda Guerra Mundial, mas em 2016 ajudou a levar Trump à Casa Branca. Com a aproximação das eleições de 2020, é importante entender as complexas e profundas raízes históricas do resultado de 2016. Fazer isso, exige irmos além das explicações rasas a respeito de raça e gênero e reconheçamos o importante papel desempenhado pela mudança de percepção em relação à função do governo na vida americana.
*Lerner é professor de história e diretor do Instituto de Estudos Coreanos da Universidade Estadual de Ohio. Ele também é editor associado da revista acadêmica Journal of American-East Asian Relations.