Curitiba É bem provável que o escritor Orhan Pamuk venha a ser condenado à prisão: a constituição turca tem um artigo especialmente desenhado para proteger o país de ataques "difamatórios", como o que ele realizou ao mencionar o massacre de talvez um milhão de armênios pelo exército turco durante a primeira guerra mundial. Os esforços para divulgação e conscientização (lentas, ambas) a respeito do shoah, o holocausto judaico, contaram com o peso de milhares de judeus em postos chaves da economia e da cultura ocidentais (a temida conspiração judaica dos anti-semitas reincidentes). Fossem eles menos poderosos, a negação venceria os fatos.
Armênios, por sua vez, não importam, simplesmente, para o mundo. O que dizer, então de ruandeses? Pretos, pobres, cidadãos de um dos menores estados africanos. De fato, o genocídio que aniquilou pelo menos oitocentos mil indivíduos de etnia tútsi, assim como hútus "colaboracionistas", continua largamente desconhecido pelo mundo "civilizado".
"Uma temporada de facões", de Jean Hatzfeld, curiosamente não faz muito para questionar as razões e, muito especialmente, a ação direta (antes e durante) das potências ocidentais na matança mais veloz de que se têm notícia (uma média de 8-10 mil mortos por dia, em sua maioria a golpes de facão, alguns comprados da França enquanto ocorria o massacre).Os livros de Gourevitch, Keane e mesmo de Kapuscinski continuam sendo referências mais adequadas para se entender aquele genocídio. Mas o que tem de inaudito o livro de Hatzfeld é sua intenção de entender aqueles genocidas e, conseqüentemente, o genocídio como possibilidade. Concentrando-se em uma pequena comunidade das montanhas ruandesas, o autor entrevistou dez presos que esperavam julgamento por ações genocidas.
O que leva uma pessoa a sair de casa, todo dia, durante mais de três meses, e cumprir uma jornada de trabalho, em horário comercial, percorrendo as redondezas buscando eliminar seus vizinhos que fossem "baratas" tútsis, ou suspeitos de escondê-los? Esses homens cumpriram expediente,deixaram de lado sua lavoura (menos lucrativa que os saques), levaram, por vezes, mulheres e filhos para acabar com uma vítima combalida ou assistir a um massacre em praça pública. Tudo, acima de tudo, muito, muito normal.
Dia-a-dia
Eles se preocuparam em não parecer preguiçosos, riram dos que atrasavam o ritmo da matança, temeram as broncas e a prepotência da interahamwe, a milícia organizada para tocar o morticínio. Eles hoje dizem coisas como "Nos primeiros dias, quem já tinha matado galinhas, e sobretudo cabras, levava vantagem"; "No início foi uma atividade menos repetitiva que o plantio; ela nos alegrava, se posso dizer assim" para se referir às ações.
O livro "Uma temporada de facões" traz uma apresentação de Susan Sontag, que termina dizendo que "todos deveriam ler o livro de Hatzfeld". E devemos, de fato.
A não ser que se prefira acreditar na incrível e sobrenatural maldaderepentina de todos aqueles homens. A não ser que se prefira desviar do assunto como incurável atrito tribal (primitivo, portanto). A não ser que se decida acreditar que aquelas pessoas são fundamentalmente diferentes de quaisquer de nós, precisamos entender o que as levou a agir daquela forma, e as leva hoje a falar daquilo com tal naturalidade. E se a obra não faz muito para expor a longa ação política que criou as condições necessárias para o genocídio, ele nos dá um acesso raro e privilegiado a mentes que foram bombardeadas por todo esse processo, que chegaram ao estágio em que podem dizer que "quando você recebe ordens categóricas e promessas de benefícios a longo prazo e se sente bem escorado pelos colegas, está pouco ligando para a maldade de matar violentamente."
Todos precisamos ler o livro de Hatzfeld, para nos conscientizarmos da verdade expressa por Jean-Baptiste Munyankore: "O que aconteceu em Nyamata, nas igrejas, nos pântanos e nas colinas, foram manobras sobrenaturais de pessoas bem naturais".
Serviço: Outros livros sobre o tema: "Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias", de Philip Gourevitch, Companhia das Letras; "Season of blood" de Fergal Keane, Penguin e "Ébano", de Ryszard Kapuscinski, Companhia das Letras.
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