Alberto Cairo, um jovem advogado italiano que optou pela fisioterapia, chegou a Cabul, em 1990, quando as guerrilhas apoiadas pelos EUA apertavam o cerco à capital afegã, pressionando o governo apoiado pelos comunistas.
Nunca mais foi embora, tornando-se assim o querido "sr. Alberto" que recupera braços, mãos, pernas e pés, oferecendo um fio de esperança em uma guerra que nunca acabou inteiramente e continua a matar e a aleijar em números recordes.
Em 17 de janeiro, o programa de reabilitação física do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC, na sigla em inglês), que Cairo lidera, comemorou seu trigésimo aniversário. Tendo passado por vários governos, a iniciativa já cuidou de quase 180 mil pacientes e gerou cerca de 200 mil próteses, números que o especialista revela com um profundo suspiro.
Nossas convicções: Os responsáveis pelo bem comum
Hoje com 66 anos, ele diz que a questão não envolve apenas pernas e braços artificiais e cadeiras de rodas, mas sim, e principalmente, dignidade.
"Quando você perde uma perna, não é só a falta do membro; você perde uma parte do coração, da mente, da autoconfiança. Tudo isso junto representa a dignidade pessoal, que tem de ser recuperada", diz ele, em Cabul, em um dos sete centros de reabilitação que gerencia.
Trajetória inspiradora
Cairo cresceu em Turim antes de se mudar para Milão, onde se formou em Direito. Porém, atraído pelo trabalho humanitário, voltou a estudar, dessa vez optando pela Fisioterapia. Uma de suas primeiras missões com o ICRC o levou à capital afegã, que estava sob cerco – e ele confessa que o que o manteve ali foi a recompensa diária de recuperar a autonomia de pessoas estigmatizadas por suas deficiências.
Ferozuddin Feroz, ministro da Saúde do Afeganistão, conta que conheceu Cairo quando estava concluindo a residência médica e várias vezes se refere a ele como "herói". "Dedicou a vida ao Afeganistão; temos muito a aprender com ele."
Quando Cairo chegou a Cabul, o programa atendia exclusivamente as vítimas de guerra. Em um país onde de 3 a 5% da população sofre de algum tipo de deficiência, segundo as estatísticas oficiais, ele logo percebeu a injustiça da situação. Em meados da mesma década, o programa foi expandido e passou a incluir qualquer um que tivesse problema de mobilidade.
"Todo dia era coisa de 50 pacientes; pelo menos quinze vítimas de guerra, que mandávamos entrar e atendíamos, mas as outras 35 tínhamos de mandar para casa porque não havia condições de ajudar. Era impossível continuar com tamanha discriminação", recorda.
Cairo conta que a mudança exigiu uma transformação tremenda. "Tratar uma amputação de guerra pode ser coisa relativamente simples, mas uma criança com paralisia cerebral ou um paciente com doença congênita exige outras especializações."
Na última década, os centros de reabilitação vêm recebendo cerca de dez mil novos pacientes por ano, sendo pelo menos 1.500 deles vítimas de guerra; os outros, de doenças e/ou acidentes. São quase cem mil que retornam uma vez por ano para fazer check-up ou consulta de rotina.
Ataques
Em 2018, o número de pacientes novos atingiu um recorde histórico, com mais de doze mil pessoas em busca de auxílio. A nova demanda coincide com a constatação de que o Afeganistão se tornou ainda mais perigoso para quem trabalha com ajuda humanitária e tem de enfrentar repetidos ataques.
O ICRC é um dos alvos desses atentados. O Talibã, inclusive, chegou a declarar suspensa a salvaguarda que oferecera ao grupo (que, aliás, foi restaurada após uma rodada discreta de negociações). Em uma das investidas mais brutais ao comitê, Lorena Enebral Perez, fisioterapeuta espanhola da equipe de Cairo, foi morta a tiros por um paciente com pólio, que entrou na sessão com uma arma escondida. O diretor da instituição no Afeganistão, Juan-Pedro Schaerer, a homenageou na cerimônia de aniversário, com um Cairo cabisbaixo a seu lado, perdido entre as lembranças e a dor.
Ele revela que todos os 750 funcionários dos sete centros de reabilitação são ex-pacientes com deficiência. "É uma instituição para os deficientes, administrada e cuidada por eles."
Gratidão
A festa foi realizada em um ginásio onde cerca de 500 paratletas treinam e praticam esportes diariamente. Um deles, o jogador de basquete cadeirante Mohammed Saber, de 28 anos, nasceu depois que Cairo chegou ao Afeganistão. Quando tinha três anos, um primo seu estava brincando com um artefato não detonado no vilarejo onde ambos viviam, na periferia de Cabul, e ele explodiu, matando o garoto de oito anos e custando ao jovem Saber as duas pernas.
Ele diz se lembrar vagamente de Cairo fazendo a prova de suas próteses, quando tinha cinco anos. Depois de quase uma década vivendo como refugiado no Paquistão, onde cresceu, mas sem a chance de adquirir novas peças, Saber voltou ao Afeganistão, na adolescência, e só então conseguiu um segundo par.
Em 2012, ficou sabendo que o centro estava oferecendo a oportunidade da prática de esportes em um ginásio recém-construído e foi se inscrever com um amigo. Hoje faz parte da seleção nacional paraolímpica de basquete e já viajou para diversos países, tendo voltado recentemente de um torneio disputado no Líbano. Além disso, trabalha no centro de reabilitação, onde recebeu treinamento durante dois anos para cuidar das vítimas de pólio.
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"Às vezes, pergunto ao Cairo se ele se lembra de mim, quando me atendeu da primeira vez e fez minhas primeiras pernas; claro que, em trinta anos, tendo tratado milhares de amputados, é praticamente impossível, mas ele sempre diz: 'Talvez. Você era muito pequenino.'"
Na cerimônia, Cairo conta que ouve de muita gente que trinta anos é muito tempo para esse tipo de atividade. "Pois eu digo que pretendo ficar mais trinta. A sensação de euforia por poder ajudar os deficientes, vê-los fazer as coisas, vê-los deixar de rastejar para sair andando, é sempre a mesma. É muito gratificante. Se comparar o que dou e o que recebo, com certeza saio no lucro."