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Personalidade

O mundo visto por Hobsbawm, maior historiador vivo

Grevistas dos Correios fizeram passeata pelo centro de Curitiba | Hedeson Alves/Gazeta do Povo
Grevistas dos Correios fizeram passeata pelo centro de Curitiba (Foto: Hedeson Alves/Gazeta do Povo)

Londres – Quando um dos mais conhecidos historiadores do mundo volta-se para os problemas políticos dos dias de hoje, vale a pena escutar. Eric Hobsbawm celebrou seu 90.° aniversário recentemente com um livro de ensaios intitulado Globalização, Democracia e Terrorismo, no qual o autor faz uma avaliação do mundo desde os atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA, passando adiante lições que ele "não só aprendeu, mas também vivenciou e refletiu durante grande parte do último século".

Hobsbawm é um intelectual que não tem sido apenas uma presença brilhante em sua profissão histórica desde os anos 40. Como homem que "relembra vividamente" da fria noite de inverno na qual Hitler tomou o poder em Berlim, o historiador sente-se habilitado a olhar o mundo contemporâneo de um "contexto mais amplo e com maior perspectiva". Sua posição nunca esteve tão alta, graças a seus dois livros anteriores: o best-seller do "curto século 20" intitulado A Era dos Extremos (1994), considerado sua obra-prima; e seu livro de memórias, Tempos Interessantes (2002), cujo estilo de escrita ultrapassa os padrões exigentes de um estilista renovado. O escopo e o poder das análises de Hobsbawm são inquestionáveis. Ele fala vários idiomas e viajou por todos os lugares imagináveis. Até mesmo a revista Spectator, abertamente hostil ao comunismo declarado de Hobsbawm, o considera nosso "maior historiador vivo".

Ele está feliz por ter chegado aos 90 anos: em breve isso não será mais novidade alguma, destaca, mas tem um "valor de algo raro" no momento. Hobsbawm quer nos ajudar a ver além de "paixões atuais e picos de vendas" – porém não se assuste: ele vê crenças liberais de uma maneira bem crua. "Hoje em dia se fala mais baboseiras sobre democracia no discurso público ocidental do que qualquer outra palavra ou conceito político", insiste.

"O islamismo fundamentalista não representa perigo algum, mesmo porque não consegue ganhar nenhuma guerra", declara. Os jovens "fundamentalistas jogadores de bomba", diz ele, não são nada comparados ao IRA. O historiador descarta a idéia de que a ONU tem autoridade independente e não tem tempo para intervenções humanitárias: "A posição padrão de qualquer estado é ir atrás de seus interesses próprios".

Hobsbawm analisa dilemas atuais com tal frieza e desprendimento que seus oponentes políticos já o identificam como um marxista chinês insensível. "Coração mole" definitivamente não é seu estilo, pois segue, de acordo com suas próprias palavras, as tradições do racionalismo esclarecedor e está frustrado com as "histerias" atuais e o "sentimento totalmente desestruturado" de que "algo deve ser feito". Seu alvo, declara, é auxiliar jovens a "enfrentar os prospectos negros do século 21 com o pessimismo como requisito".

Seu prognóstico certamente não é dos mais alegres. Ele fala sobre a "extraordinária instabilidade da nova economia global". O novo imperialismo americano está condenado a falhar, afirma. O autor também teme desigualdades econômicas ainda maiores entre as nações e o crescimento da xenofobia no Ocidente. Também não vê futuro em políticas ecológicas, visto que elas "apelam apenas para as pessoas bem-sucedidas: "Quanto mais dinheiro você tem, mais você se preocupa com os problemas do meio-ambiente, mas o ‘grosso’ da população mundial não está nesta situação". Com relação ao "pêndulo gravitacional" da tecnologia para a China e a Índia, ele aponta que "o que vai acontecer é bem claro: cedo ou tarde vamos nos dar conta de que vivemos como príncipes", e que isso não será mais possível.

Ao que tudo indica, o mundo de hoje não agrada Hobsbawm. Um aspecto do seu discurso também presente nas suas obras é o ar nostálgico dos anos entre 1945 e 1975 – les trente glorieuses (os trinta gloriosos) – quando a guerra fria impôs certa ordem na política mundial e as nações ainda não tinham sido enfraquecidas com o neoliberalismo econômico mundial. Ele é amargo com relação às conquistas dos anos 60: "Não foi uma revolução política nem social. O que aconteceu foi algo de nível espiritual na sociedade consumidora – todo mundo cuidando do seu próprio nariz. Isso não me parece certo". O historiador nunca vestiu jeans e comenta que o desaparecimento da classe operária industrial "é o momento histórico em que as regras e convenções que tinham até aqui mantido os seres humanos unidos pelos laços da família, comunidades e sociedades deixam de aparecer". Pouquíssimas pessoas são hoje capazes de ganhar suas vidas "decentemente". Tudo isto é dito com evidente melancolia.

Diversos trechos de Tempos Interessantes deixam claro que a formação política de Hobsbawm não podia ser mais carregada emocionalmente. Nada mais digno para um homem que foi tão identificado com o "sonho da Revolução de Outubro" (Revolução Bolchevique) ter nascido em 1917. Após a morte dos pais, ele mudou, em 1931, de Viena para Berlim para morar com um casal de tios. "Este foi o ano em que o mundo entrou em colapso econômico, o momento histórico que decidiu a forma do século 20 e da minha vida", diz. Em janeiro de 1933, Hobsbawm marchou como um socialista jovem pela noite – "cantando" – numa reação desesperada ao desfile em massa das tropas nazistas. "A participação em uma demonstração pública", ele escreve, "é a atividade que combina experiência corporal e uma intensa emoção que mais se aproxima do sexo".

Três anos mais tarde, época em que sua família mudou para a Inglaterra, Hobsbawm estava em Paris para a "maior demonstração em massa da esquerda francesa" – a celebração do dia da Bastilha e a vitória da Frente Popular. A esquerda estava unida contra o fascismo e a marcha foi "inesquecível... Um dos raros dias que minha mente estava no piloto automático. Eu só senti e vivenciei o momento".

Hobsbawm era um comunista cheio de energia em Cambridge no final dos anos 30, mas nada na Grã-Bretanha inteira se igualava suas experiências continentais – a não ser o jazz, que lhe foi apresentado pela primeira vez por um primo em Sydenham. "Como estava convencido de que eu não era nada atrativo sexualmente", relembra, "eu reprimi deliberadamente minha sensualidade física e meu impulso sexual. O Jazz trouxe uma dimensão sem palavras e de emoção física inquestionável para minha existência monopolizada pelas palavras e exercícios do intelecto". Nos anos 50, Hobsbawm tinha o hábito de freqüentar o clube de jazz Ronnie Scott, após lecionar à noite em Birkbeck – com o pseudônimo de Francis Newton, ele chegou a ser crítico de jazz da revista britânica New Statesman. O momento de mais orgulho da sua vida foi receber uma homenagem honorária ao lado de Benny Goodman.

Hobsbawm foi um dos pioneiros da "história que vem debaixo", um approach influenciado pelas ciências sociais, que dominaram a profissão por anos. Rebeldes Primitivos (1959) e Bandidos (1969) tratam de personagens da mitologia popular de vários países que se opuseram à opressão feita pelas elites – "Robin Hoods" amados pelo povo. A Invenção da Tradição (1983), editada com Terence Ranger, explorou brilhantemente como os rituais e práticas que alegam ser natos e imemoriais (desde os kilts escoceses até a família real britânica) foram, na verdade, desenvolvidos deliberadamente há não muito tempo.

Mas Hobsbawm deve sua fama principalmente a sua trilogia sobre "o longo século 19". Se A Era da Revolução, A Era do Capital e A Era do Império tem a mesma idéia base, ela deve ser a relação entre a bem-sucedida emergência do capitalismo e o desenvolvimento da sociedade burguesa e o liberalismo político. As transformações sociais são interpretadas como sendo motivadas pela mudança econômica, mas sem a existência do retinir da máquina dialética. Obviamente, o poder do capital não representou a suave troca de governos aristocráticos em todos os lugares nem a vitória nada suada do liberalismo: a velha ordem só acabou com a crise de 1914.

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