Em seus 26 anos como primeiro e único presidente do Cazaquistão, Nursultan A. Nazarbayev conseguiu segurar o apetite da Rússia à distância e navegar as águas turbulentas da geopolítica entre Moscou, Pequim e Washington, mantendo um clima cordial nas três capitais.
Entretanto, o talento do líder autoritário para equilibrar interesses díspares parece tê-lo abandonado de repente em uma questão que, à primeira vista, não envolve nem grandes rivalidades de poder, nem assuntos de Estado cruciais: o papel do humilde apóstrofo na escrita das palavras de seu idioma.
A língua escrita cazaque atualmente usa uma versão modificada do alfabeto cirílico, legado do regime soviético, mas Nazarbayev anunciou, em maio passado, que ele será substituído pelo abecedário latino. "Não só é a realização dos sonhos de nossos ancestrais como também o futuro das gerações mais jovens", afirma.
A decisão, entretanto, levantou uma questão traiçoeira: como representar foneticamente uma língua que não tem alfabeto próprio e que sempre usou símbolos importados?
A intervenção inflamada do presidente no debate nacional caloroso sobre a nova escrita e a solução proposta – ele quer muitos e muitos apóstrofos – enfatiza como praticamente tudo nessa antiga república soviética, por menor e mais obscuro que seja, tem que ter o crivo desse homem de 77 anos, ou pelo menos daqueles que alegam falar em seu nome.
"Esse é o problema básico do nosso país: se o presidente diz ou escreve alguma coisa em um guardanapo, todo mundo tem que bater palma", desabafa Aidos Sarym, analista político e membro da comissão de reforma linguística criada no ano passado.
E acrescenta: "Nazarbayev merece crédito por transformar o Cazaquistão no país mais estável e próspero em uma região que sempre foi castigada pela instabilidade política e pelo fracasso econômico, mas a língua é uma esfera muito delicada, que não pode ser ditada pelos governantes."
Língua independente
Como acontece com vários países que declararam independência recentemente e lutam para criar uma identidade nacional depois de muito tempo subjugado por uma potência estrangeira, no Cazaquistão a língua é uma questão altamente controversa. Aqui, muita gente, incluindo os cazaques étnicos, ainda falam russo.
Porém, desde que emergiu das ruínas da União Soviética como nação independente, em 1991, o país vem diminuindo como pode o legado da hegemonia cultural e política de Moscou.
Substituiu o russo pelo cazaque como o principal idioma na educação e no governo, colocou o inglês no mesmo nível que o russo em termos de ensino de língua estrangeira e produziu uma enxurrada de filmes e programas de TV que destacam a cultura nacional e as tradições nômades, há tempo esquecidas.
A mudança para o alfabeto latino, cuja transição deve se completar até 2025, vem sendo muito elogiada e considerada a afirmação final, há muito esperada, da independência total da Rússia – e de sua determinação de fazer parte do cenário internacional. As principais objeções, como era de se esperar, saíram da Igreja Ortodoxa Russa em Moscou e dos russos étnicos que vivem no Cazaquistão.
Ideia péssima
Bem menos popular, entretanto, foi a decisão do presidente, tomada em outubro, ignorando os conselhos dos especialistas, anunciando um sistema que usa apóstrofos para designar os sons nativos que não existem em outros idiomas escritos no abecedário latino padrão.
O nome do país, por exemplo – República do Cazaquistão –, em cazaque corrido ficará Qazaqstan Respy-bli-kasy.
Em um país onde praticamente ninguém desafia o presidente publicamente, Nazarbayev viu sua decisão linguística ser achacada de todos os lados.
Os linguistas, que tinham recomendado que o novo sistema seguisse o exemplo do turco – usando tremas e outros símbolos fonéticos em vez de apóstrofos – reclamaram, afirmando que a solução presidencial é feia e imprecisa.
"Ninguém sabe de onde ele tirou essa ideia; é péssima. Os intelectuais estão rindo e se perguntando como é que alguém vai poder ler qualquer coisa representada dessa forma", diz Timur Kocaoglu, professor de Relações Internacionais e Estudos Turcos da Universidade Estadual do Michigan, que visitou o Cazaquistão em 2017.
Segundo ele, o alfabeto sugerido "fere a vista".
A comoção está testando os limites da tática de Nazarbayev em relação ao governo: ele sabe que não tem oposição, mas, por outro lado, procura se alinhar à opinião pública. Indicando a possível disposição de uma eventual mudança de planos, Kassym-Jomart Tokayev, presidente do Senado e aliado influente do presidente, disse, no mês passado, que ainda era "muito cedo" para começar a usar apóstrofos nos jornais e na comunicação em geral porque não se havia chegado a "uma decisão final".
Depois de levar o Cazaquistão à independência, Nazarbayev, preocupado com uma possível retaliação da grande população étnica russa do país, ignorou as exigências dos nacionalistas, que pediam o ressurgimento rápido do alfabeto latino. Outros países que tinham declarado independência mais ou menos na mesma época e que usavam línguas semelhantes, como o Uzbequistão e o Azerbaijão, pararam de usar o cirílico, mas tinham populações russas bem menores.
"Todos nós queríamos criar nossos próprios países e culturas para fugir de vez da União Soviética, já em colapso; o problema é que no Cazaquistão mudar o alfabeto implica em uma dificuldade política", explica Anar Fazylzhanov, vice-diretor do Instituto de Linguística de Almaty, capital cultural e comercial do país.
Porém, nos últimos vinte anos, o equilíbrio demográfico passou a pender a favor dos cazaques étnicos, depois da partida de muitos russos, cuja representação na população geral caiu de 40 por cento da época de independência para vinte por cento hoje, abrindo caminho para Nazarbayev apoiar o sumiço do cirílico.
"O cirílico era parte do projeto colonial russo e é por isso que muita gente vê o alfabeto latino como uma medida anti-imperialista", afirma Dossym Satpayev, prestigiado analista político cazaque.
A medida ganhou um ritmo mais ágil em abril passado, com o estabelecimento de uma Comissão Nacional para a Modernização da Sociedade estabelecida por Nazarbayev, que incluía um painel de linguistas encarregado de definir a transcrição dos sons da língua.
Uma vez que o cazaque tem muitos sons que não são de fácil representação nem no alfabeto cirílico, nem no latino sem o uso de acentos adicionais, era preciso decidir se o idioma seguiria o turco – que usa o abecedário latino, mas apela para a cedilha, o til, a crase e outros símbolos – ou se inventaria uma fonética alternativa.
Em agosto, os linguistas propuseram a utilização de um alfabeto que seguisse o modelo turco.
O gabinete presidencial, porém, declarou a sugestão fora de questão, pois os símbolos daquele idioma não estão presentes nos teclados padrão.
Modificação dos sons
O alfabeto latino modificado proposto por Nazarbayev usa o apóstrofo para alongar ou modificar o som de determinadas letras.
Por exemplo, o "i" com apóstrofo representa mais ou menos o mesmo som da letra em "Fiji"; sozinho, soa mais como um "ã". O "s" com apóstrofo soa como "ch" e o "c", "tch". De acordo com o novo sistema, a palavra cazaque para "cereja" ficaria "s-i-i-e, e pronunciada "xe-ii-ie".
"Quando os acadêmicos souberam da novidade, ficaram chocados", confessa Kazhybek. Informado extraoficialmente das propostas presidenciais antes do anúncio, ele correu para a capital, Astana, para pedir uma reconsideração, mas foi informado que os apóstrofos não vão desparecer.
A única razão dada publicamente por Nazarbayev para explicar sua recusa em adotar o esquema de acentos dos turcos é que "não deve haver quaisquer sinais ou pontos supérfluos que não possam ser adicionados diretamente no computador", disse ele em setembro.
Há, porém, quem entenda outra motivação: Nazarbayev pode estar querendo evitar qualquer sugestão de que o Cazaquistão esteja virando as costas para a Rússia e adotando o panturquismo, questão que incomoda os russos desde os tempos czaristas.
Outro provável motivo para o envolvimento do presidente tem a ver com a forma como ele quer ser lembrado se por acaso renunciar ou morrer inesperadamente no poder.
"O presidente está pensando em seu legado e quer entrar para a história como o homem que criou um novo alfabeto; o problema é que ele não é filólogo", resume Satpayev, que apoia a troca para o alfabeto latino, mas não na versão presidencial.
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