
Toronto, Canadá - Todos os meses um remédio milagroso é anunciado com estardalhaço, mas apenas uma ou duas vezes a cada geração surge uma droga verdadeiramente revolucionária. Esse é o caso dos medicamentos que viram sucesso imediato por serem capazes de praticamente levantar os mortos. Se a estreia de alguns desses produtos como os remédios para o tratamento da aids continua fresca na memória, o aparecimento do primeiro deles é pouco lembrado. Trata-se da insulina injetável, que, após muitas tentativas feitas por pesquisadores do mundo inteiro, foi isolada em 1921 por uma equipe de canadenses briguentos. Depois dessa descoberta, crianças voltavam a sorrir e a brincar, pais se emocionavam e médicos contavam casos que mais pareciam ressurreições bíblicas.
O milagre da insulina foi mais do que um avanço em testes sanguíneos. Como na visão do profeta Ezequiel sobre os ossos secos, o medicamento colocou carne em esqueletos vivos.
Nas primeiras décadas do século 20, meia dúzia de diferentes grupos de pesquisa estavam em busca da insulina um hormônio produzido pelo pâncreas, mas difícil de ser separado das demais enzimas digestivas também fabricadas pelo órgão.
Sem insulina, o corpo não consegue consumir seu principal combustível, a glicose. A maioria das crianças diabéticas não produz insulina, enquanto os adultos portadores de diabete tipo 2 frequentemente associado à obesidade têm organismo resistente à ação do hormônio. Em ambos os casos, açúcar e amido são um veneno para o diabético, pois entopem a circulação sanguínea com uma quantidade de glicose que não será utilizada. Pacientes com deficiência de insulina sentem mais sede e fome, porém na medida em que comem mais também aumentam o desperdício de glicose.
Mesmo antes de a insulina estar disponível os médicos já haviam entendido bem esse ciclo e elaboravam tratamentos paliativos. Os diabéticos tinham de seguir dietas com um número de calorias mínimo suficiente apenas para a sobrevivência e baseadas em saladas e ovos, além de totalmente desprovidas de açúcar e amido. Assim, os pacientes que já eram magros se tornavam esqueléticos. Por outro lado, o excesso de glicose desaparecia do sangue e da urina e a sobrevida dessas pessoas era mais longa.
Um grande especialista na terapia baseada em regimes alimentares foi o médico Frederick Allen (1890-1954), de Nova York, que fundou o primeiro hospital residencial para diabéticos. O célebre jurista e membro da Suprema Corte norte-americana Charles Evans Hughes recorreu ao dr. Allen quando sua filha Elizabeth, então com 11 anos de idade, foi diagnosticada com a doença, em 1919.
Elizabeth Hughes era uma garota alegre, bonita, com um metro e meio de altura, cabelos castanhos e lisos e um grande interesse por pássaros. Com a dieta receitada por Allen, seu peso caiu para 30 quilos, depois para 24 quilos e, após uma diarreia que quase a matou na primavera de 1922, para 21 quilos. Até ali, ela já havia sobrevivido por três anos, muito mais do que o esperado. Foi quando sua mãe ouviu a notícia: a insulina havia sido finalmente isolada no Canadá.
O herói improvável dessa história foi Frederick Banting (1891-1941), um garoto caipira e esquisito, graduado em Medicina sem muita distinção, ferido na Primeira Guerra Mundial e que havia mais ou menos se forçado a entrar num laboratório da Universidade de Toronto com o objetivo de obter a tal substância intangível. Durante o verão absurdamente quente de 1921, Banting e seu assistente Charles Best realizaram experimentos em cães diabéticos. O sucesso fora apenas parcial até o cachorro de número 92, um collie dourado, que pulou da mesa e começou a abanar seu rabo logo após a injeção aplicada pelos pesquisadores. Enquanto isso, o diretor do laboratório e mentor de Banting, John J. R.Macleod (1876-1935), passava férias na Escócia.
Banting nunca perdoou Macleod, que, descansado e revigorado, retornou às atividades no outono seguinte e assumiu o controle da pesquisa. Essa hostilidade amarga continuou a existir por anos a fio, inclusive depois da cerimônia de entrega do Nobel de 1923, à qual Banting se recusou a comparecer. Mesmo tendo aceitado compartilhar o prêmio de Medicina com Macleod, Banting não dividiria o pódio com seu ex-chefe.
Nessa época, mães do mundo inteiro enviavam cartas de partir o coração. "Querido dr. Banting, estou ansiosa em saber mais sobre sua descoberta", escreveu uma delas, antes de descrever o caso de sua filha: "Ela está num estado lamentável, esgotada e reduzida". Quem assinava era a mãe de Elizabeth Hughes, Antoinette. Àquela altura, Charles Evans Hughes havia deixado temporariamente a Suprema Corte para assumir o cargo de secretário de Estado no governo do presidente Warren G. Harding. Banting não se deixou impressionar e respondeu que "não, me desculpe, não há insulina disponível". De fato, a equipe dele tinha dificuldades para fornecer o produto para mais do que alguns poucos pacientes.
Meses depois, o médico mudaria de ideia.
Forças superiores provavelmente intervieram em favor da menina, ou talvez o próprio Hughes um homem severo e sisudo, a quem Theodore Roosevelt havia apelidado de "iceberg barbudo" tenha mexido os pauzinhos.
Assim, Elizabeth logo estaria a caminho de Toronto para receber as injeções que salvariam sua vida. Era o fim de sua jornada, mas apenas o início da história para muitas outras crianças sem conexões importantes, que tiveram de aguardar. Durante um bom tempo, os cientistas canadenses brigaram intensamente sobre a maneira mais justa de distribuir as pequenas quantidades da substância. Banting ainda deixaria um de seus colegas com o olho roxo antes de as discussões terminarem.
No fim das contas, foi estabelecido o primeiro acordo entre acadêmicos, médicos autônomos e a indústria farmacêutica. Por meio dele, o laboratório Eli J. Lilly and Co., de Indianápolis, recebeu o direito de produzir insulina em larga escala.
Quando os primeiros coquetéis de remédios contra a aids começaram a salvar vidas de maneira aparentemente milagrosa, Kent Sepkowitz, especialista em doenças infecciosas do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center de Nova York, debruçou-se sobre a literatura que relatava como foram os primórdios da insulina injetável. O que ele descobriu nessa pesquisa foram semelhanças no desenvolvimento de ambos os medicamentos. "De certa forma, a descoberta em si é a parte fácil. Depois dela é que começa o trabalho de verdade", conta.
Tanto no caso da insulina como no surgimento dos medicamentos para o tratamento da aids, o grande desafio foi "conseguir levar os produtos daqui até lá", explica Sepkowitz. Os custos e a logística envolvidos na produção de insulina em larga escala eram inicialmente assustadores. Mas não demorou muito para que grandes carregamentos de carne congelada e pâncreas de porco começassem a sair dos gigantescos abatedouros de Chicago e chegar à fábrica da Lilly. Com isso, o preço do remédio cairia 90% até 1932.
A história da insulina está em exposição desde terça-feira na New York Historical Society.
A mostra é baseada no livro Breakthroug, de autoria de Thea Cooper e Arthur Ainsberg.
Tradução: João Paulo Pimentel